TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
440 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ora, a plena jurisdição impõe que a decisão impugnada, por via da impugnação judicial, não fique sujeita a um mero controlo de fundamentação, como sucede nos recursos ordinários em processo penal, mas, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, a um genuíno reexame do caso (…), isto é, o objeto do controlo judicial não é a decisão administrativa, mas as questões subjacentes à decisão administrativa, que o Tribunal decide de novo e, se necessário, mediante a produção de novos meios de prova. O que significa também que, nos casos como o dos autos, em que é impugnada a própria culpabilidade, a decisão administrativa, no que respeita aos factos e ao seu enquadramento jurídico, adquire um valor meramente enunciativo, valendo apenas como imputação fática e legal, tal como resulta do art. 62.º/1, do RGCO. Efetivamente, nestes casos e fazendo uso das palavras do Tribu- nal Constitucional, no citado acórdão n.º 595/12, a impugnação, se respeitados os requisitos de forma e tempo, elimin[a] automaticamente o caráter definitivo ( hoc sensu , materialmente definidor da situação do particular) da decisão administrativa, porque a apresentação dos autos ao juiz vale como acusação, assim se convertendo em judicial o poder de aplicação da sanção (cfr. artigo 62.º do RGCO) (acórdão do TC n.º 595/12). Na mesma senda, refere-se, neste aresto do Tribunal Constitucional, o caráter “provisório” da decisão administrativa face à natureza da impugnação judicial, que consubstancia uma verdadeira “transferência da questão do domínio da administração para o juiz, no dizer do Bundesgerichtshof alemão” (na expressão de Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit. , pág. 295). As asserções precedentes conduzem à conclusão de que é pressuposto e corolário desse controlo judicial pleno, imposto pela efetividade da tutela jurisdicional, decorrente de um incremento do risco de erro e de decisões injustas, que o poder de aplicação da sanção, no caso de impugnação judicial, seja transferido para o Tribunal. Consequentemente, os normativos em causa, ao obstarem a esse efeito, consubstanciam uma restrição do direito à tutela jurisdicional efetiva. Tal restrição não decorre diretamente da Constituição, pelo que apenas será constitucionalmente conforme se, entre o mais, respeitar o princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18.º/2, da CRP. O que não se verifica. Efetivamente, a solução adotada viola, de forma manifesta, o aludido princípio na vertente da necessidade. Recorde-se que o princípio da necessidade impõe que as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias (…). A razão pela qual se entende existir uma violação do princípio da necessidade remete-nos para a natureza e a finalidade dos normativos em análise. A propósito desta matéria, já se referiu que a solução adotada pelo legislador não é ditada por imperativos de satisfação de necessidades imediatas ou por razões pragmáticas de evitar a paralisação das atribuições da ERS. Na verdade, apenas se consegue vislumbrar na solução adotada pelo legislador um desiderato cautelar, ou seja, a pretensão de evitar ou diminuir o risco de incumprimento das sanções, quer devido a eventuais atos fraudulentos do próprio arguido ao interpor o recurso de impugnação judicial, visando propósitos dilatórios (desincentivando-o também de fazer uso deste meio processual para o efeito), quer em virtude de vicissitudes alheias à sua vontade e cuja probabilidade de ocorrência aumenta pelo simples decurso do tempo. É evidente que o legislador ordinário não está absolutamente impedido de adotar medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais, existindo várias no nosso ordenamento jurídico, inclusive no próprio processo penal e mais restritivas do que a execução antecipada de coimas. Contudo, a particularidade da medida adotada pelo legislador nos normativos em análise é que não tem subja- cente um receio concreto, fundado ou casuisticamente apurado de incumprimento das sanções. Acresce ainda que, face à transferência do poder de decisão para o Tribunal, também não se pode presumir a existência de um fundado receio decorrente apenas e só da decisão administrativa. Por tais razões, a execução antecipada das sanções, assente em desideratos cautelares e sem uma aferição con- creta de um fundado receio de incumprimento, podendo ser eficaz, é demasiado gravosa. Efetivamente, o legisla- dor dispunha de meios menos gravosos para atingir as referidas finalidades cautelares, designadamente por via de medidas de garantia patrimonial, semelhantes à caução económica prevista no art. 227.º, do CPP e que assentam num fundado receio casuisticamente aferido.
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