TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
391 acórdão n.º 80/18 provoca a discussão sobre a aplicabilidade, e em que termos, das normas e princípios constitucionais em matéria penal a esse domínio. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 29.º da CRP, «é problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensivos a outros domínios sancionatórios. A epígrafe «aplicação da lei criminal» e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções)» – ( Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição, pág. 498). Mas o facto de as contraordenações fazerem parte do poder punitivo estadual, cuja expressão máxima se encon- tra no direito penal, justifica que o seu regime jurídico seja influenciado pelos princípios e regras comuns a todo o direito sancionatório público. O direito de mera ordenação social é um direito sancionador, que permite à Administração participar no exercício do poder punitivo estadual, aplicando penalidades aos administrados, o que significa que esse direito e esse poder, enquanto emanação do jus puniendi , estão matizados pelos princípios e pelas regras “penais”. Por isso, há de admitir-se que os princípios constitucionais do direito penal possam influenciar os direitos sancionadores que derivam da mesma matriz. Como acrescentam os referidos autores, tem de «entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, desig- nadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar». Assim, os princípios com relevo em matéria penal, como os da legalidade, da culpa, non bis in idem , da não retroatividade, da proibição dos efeitos automáticos das penas, da proibição da transmissão da responsabilidade penal, podem estender-se ao domínio contraordena- cional, até porque são derivados de princípios do Estado de direito e da segurança jurídica, nomeadamente sob o seu aspeto de proteção da confiança, princípios constitucionais de validade fundamentante da ordem jurídica. O que não significa, é evidente, que não deixe de haver diferenciações na extensão desses princípios ao domí- nio contraordenacional. É que a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e imponderada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal. Tais ilícitos não se distinguem apenas pelo diferente tipo de cominação – uma coima ou uma pena – mas sobretudo por um critério material que atende à diferença de bens jurídicos protegidos e à diferente ressonância ética dos ilícitos. Num critério de distinção situado num plano ético, como o seguido por Figueiredo Dias, é possível distinguir condutas a que «antes e inde- pendentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas a que não corresponde, um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente relevante, no segundo caso axiologicamente neutra. O que no direito das contraordenações é axiologicamente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal – sem prejuízo de, uma vez conexionada com este, ela passar a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social» (cfr. “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Eduardo Correia, et al. Direito penal económico e europeu: textos doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág. 26 e 27). Ora, esta distinção tem relevância no relacionamento desses direitos com a ordem jurídico-constitucional. Como refere o mesmo autor «são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem a legislação penal e a legislação das contraordenações». A submissão do direito das contraordenações às garantias essenciais do direito penal, isto é, às garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos, não significa que as normas e princípios constitucionais em matéria penal tenham que ser aplicadas ao domínio contraordenacional com a mesma intensidade e com as mesmas exigências. A indiferença ético-social das condutas que integram as contraordenações coloca diferente grau de exigência ao legislador ordinário na con- figuração dos respetivos ilícitos, já que não se trata de prevenir ou reprimir condutas ofensivas de bens jurídico- -constitucionais, independentemente da sua proibição legal, mas sim de advertir ou admoestar a inobservância de certas proibições ou imposições legislativas. Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n. os 158/92, 344/93, 469/97, 461/11, 537/11, 45/14, 180/14). E com fundamento na diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não valem com a
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