TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

212 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 4. A posição da maioria comporta a colocação da gestante de substituição na posição central de todo o processo, preponderante entre os vários interesses em presença, quer antes, quer depois do parto, pois, como se viu, é-lhe assegurado título parental que se opõe à obrigação de entrega da criança, salvo intervenção judi- cial (sendo difícil identificar a sede processual vocacionada a uma tal atuação). Não se questiona que essa pudesse ter sido a opção do legislador na modulação do regime. O que não tem por certo, todavia, é que tal modelo seja constitucionalmente imposto, invalidando as normas que não admitam a revogação do consentimento pela gestante de substituição com a amplitude decidida. A importância que a criança assume os beneficiários e estes para a criança não deve ser olvidada ou minorada. Sem o impulso e a perseverança dos beneficiários na ultrapassagem de impedimento absoluto e definitiva à gravidez, ou de outra situação clínica justificativa da gestação de substituição, aquela criança não existiria, além de que o contributo genérico de pelo menos um dos beneficiários (e não da gestante, à qual está vedada a doação de ovócito) significa que o respetivo código genético contribui para a realidade única e inconfundível do ser-pessoa nascido por via de gestação de substituição. Pelo menos a par – e sem que se procure aqui uma qualquer hierarquização – de outros vínculos biológicos, epigenéticos e gestacionais, que intercedam durante a gestação. Também de um ponto de vista psicoafetivo, o investimento dos beneficiários no projeto parental, assim como no acompanhamento de todo o processo da gravidez e parto, não pode ser desconsiderado. Por outro lado, as normas em análise têm por si o desenho de um sistema normativo neste ponto claro e seguro (o mesmo não acontece noutros aspetos do regime, o que não invalida o que se vem de dizer), pre- venindo conflitos entre beneficiários, por um lado, e gestante de substituição, por outro, todos disputando a criança, questões que inevitavelmente se irão arrastar nos tribunais, com potenciais efeitos lesivos no desen- volvimento da criança. Coloca-se ainda a interrogação sobre se a extensão do direito ao arrependimento até à entrega da criança aos beneficiários (cujo prazo caberá ao legislador definir, mas que se pode, para efeitos de argumentação, perspetivar como similar ao da prestação para o consentimento prévia à adoção: seis semanas após o parto) não promove afinal o que se quer evitar, ou seja, a prestação de consentimento no momento inicial pela gestante de substituição sem a devida ponderação de todas as implicações e riscos a que se sujeita e de que é profusamente informada, vindo a reagir de modo igualmente imponderado, mas em sentido inverso, a qualquer vicissitude tida como negativa ou simplesmente inesperada. Por exemplo durante o puerpério, período reconhecidamente vulnerável e não raras vezes marcado por perturbações psicológicas ou mesmo patologias depressivas. A nosso ver, não estando o Tribunal em posição de afirmar a presença de um défice de proteção da auto- nomia ética e pessoal da gestante ao longo do processo de gravidez de substituição, e mesmo após o parto, não existe fundamento para censurar a opção do legislador em admitir a respetiva revogação do consenti- mento apenas até ao início dos processos terapêuticos de PMA, e não até à entrega da criança aos beneficiá- rios, e, consequencialmente, declarar a inconstitucionalidade da norma que estipula que a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários. Acresce que, ao assumir que a consideração do projeto parental, alternativo e concorrente, supervenien- temente assumido pela gestante, corresponde a solução, se não reclamada, pelo menos vocacionada para a salvaguarda da posição da criança nascida, enquanto sujeito de direitos – incluindo, portanto, o direito à identidade pessoal –, a posição sufragada pela maioria suscita as maiores perplexidades. Apesar de considerar constitucionalmente imperativa tanto a consideração do projeto de parentalidade supervenientemente assumido pela gestante, como a possibilidade da sua prevalência sobre o projeto parental protagonizado pelo casal de beneficiários, a posição que obteve vencimento não perspetiva, muito menos em toda a sua previsível extensão, as consequências previsivelmente determinadas por uma tal solução: vin- gando o projeto de parentalidade da gestante, o título da sua maternidade fundar-se-á no disposto no n.º 1 do artigo 1796.º do Código Civil ou será constituído por via judicial? Sendo a gestante casada, o estabele- cimento da maternidade a seu favor desencadeará o funcionamento da presunção estabelecida no n.º 2 do referido artigo, sendo considerado pai da criança o cônjuge respetivo? Não sendo a gestante casada, somente

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