TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
210 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Essa compreensão do regime consagrado no artigo 8.º da LPMA comporta, porém, uma leitura des- contextualizada e teleologicamente desalinhada do segmento final do respetivo n.º 1, cujo resultado é o de colocar sob incidência do modelo contratual da gestação de substituição – e consequentemente, ao alcance dos efeitos associáveis à revogação do consentimento por alteração da vontade da gestante – aspetos que, por contenderem diretamente com o estabelecimento da filiação da criança nascida, foram colocados intencio- nalmente a salvo das vicissitudes da relação contratualmente estabelecida entre as partes – necessariamente contingente e imprevisível –, através da opção por um modelo de reconhecimento legal da parentalidade. De acordo com o modelo consagrado na LPMA, o vínculo de filiação da criança nascida tem origem na lei e não no contrato: apesar de pressupor um contrato de gestação válido e eficaz, tal vinculação não procede de qualquer um dos atos de vontade em que se funda o contrato de gestação de substituição, nem é por isso afetável pela sua eventual alteração, em particular por aquela que se expressa na revogação do consentimento prestado. Se a gestação de substituição constitui o resultado do exercício, que se exige livre e esclarecido, do direito à autodeterminação de todos os intervenientes e da autonomia da sua vontade, já a definição do título da filiação da criança nascida assenta num juízo ponderativo levado a cabo pelo legislador democraticamente legitimado, juízo esse que, radicado na consideração prevalecente do projeto parental e do vínculo genético que, se não a ambos, pelo menos a um deles, liga o casal de beneficiários à criança nascida através da gestação de substituição, está longe de poder ser considerado descabido, irrazoável ou arbitrário. O segundo equívoco – decorrente, em parte, do anterior –, reside no modo como, sob a assunção de que o título da parentalidade dos beneficiários somente poderá fundar-se no consentimento da gestante, a maioria estabelece, no âmbito da relação multifacetada em presença – que obriga à consideração do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1) e do direito de constituir família (artigo 36.º, n.º 1) da gestante, por um lado, da condição de sujeito de direitos da criança nascida [artigos 1.º, 67.º, n.º 2, alínea e) ] e do dever estadual de proteção da infância (artigo 69.º, n.º 1, todos da Constituição), por outro, e, ainda, da liberdade de conformação do legislador democrático na opção pelo estabelecimento de um critério legal de filiação em favor do casal de beneficiários –, as conexões que suportam o juízo de inconstitucionalidade. Para concluir que o legislador restringiu, de forma incompatível com o princípio da proibição do excesso, o direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, e o seu direito de constituir família, a posição maioritária entende que a liberdade de ação da gestante, essencial à salvaguarda da sua dignidade, apenas não será afetada se e na medida em que lhe for assegurado o exercício da sua autonomia decisória com vista a todo o processo de gestação de substituição. Apesar de se ter tal entendimento por inquestionável, daí não se segue, todavia, que o estabelecimento da filiação da criança nascida através da gestação de substituição cons- titua – e, menos ainda, não possa deixar de constituir – um momento ou uma fase do processo de gestação de substituição ao alcance ainda da liberdade de autodeterminação da gestante, de tal modo que a formação pela gestante de um projeto parental próprio a certa altura da execução do processo deva concorrer nos mes- mos exatos termos com aquele protagonizado pelo casal de beneficiários como critério jurídico da filiação. 3. O juízo de inconstitucionalidade que o Tribunal formula quanto às normas referidas, por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, decorre da consideração que o direito ao arre- pendimento da gestante deve ser garantido na sua extensão temporal máxima, apenas cessando no momento da entrega da criança aos beneficiários a cujo projeto parental aderiu. Tal conclusão de imperatividade, para assegurar a solvabilidade do regime de gestação de substituição à luz da dignidade da pessoa humana, da pos- sibilidade de revogação do consentimento a que alude o artigo 14.º, n.º 5, da LPMA, toma como premissa que, pese embora o quadro instituído não se mostre desadequado ou insuficiente para proteger eficazmente a liberdade e o esclarecimento da gestante no momento em que contrata e presta o consentimento, o mesmo não pode ser dito em relação a todas as fases de execução do acordo de vontades, em virtude de inescapável imprevisibilidade das vicissitudes da sujeição a técnicas de PMA, da gravidez, do parto e do puerpério.
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