TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
208 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O panorama de direito comparado é, de resto, demonstrativo da diversidade de respostas normativas ao problema, como se dá nota na decisão, encontrando-se modelos jurídicos que não só não reconhecem como censuram em qualquer caso a gestação de substituição, outros que a acolhem e disciplinam de modo mais ou menos ampla e amigável e, ainda, soluções normativas intermédias, nas quais o legislador, perante o feixe de direitos em tensão, procura um ponto de equilíbrio e de distribuição razoável de riscos e sacrifícios, sempre com salvaguarda do superior interesse da criança nascida por via de gestação de substituição. O regime jurí- dico instituído no artigo 8.º da LPMA procura inscrever-se entre estes últimos. Tal como consagrado, o sistema normativo instituído pelo legislador nacional baseia-se na combinação de um modelo contratual de gestação de substituição com um modelo de reconhecimento legal da paren- talidade. Embora funcionalmente dependentes ou interligados – no sentido em que o estabelecimento da parentalidade pressupõe uma gestação de substituição que tenha tido efetivamente lugar –, tais modelos assentam, porém, em ponderações próprias e autónomas, as quais respondem, por sua vez, a preocupações de natureza ou de ordem diversa. O modelo contratual de gestação de substituição assenta no requisito da convergência formalizada de dois atos de vontade, de conteúdo distinto mas não conflituante, pois ambos confluem na concretização de mesmo (e único) propósito: pelo lado dos beneficiários, a vontade de serem pais de um filho geneticamente seu (ou, pelo menos, de um deles), através de uma gestação a suportar pela gestante; e, pelo lado da gestante, a vontade de suportar a gravidez e de dar à luz um filho genético de ambos (ou, pelo menos, de um) dos beneficiários. O acordo de vontades estabelecido entre todos os intervenientes tem, assim, por objeto a gestação no ventre de uma outra mulher de um filho genético dos beneficiários – na hipótese que se perspetiva mais comum, de ambos os beneficiários –, pressupondo e garantindo o legislador que ambas as partes, beneficiários e gestante de substituição, ao prestar o respetivo consentimento para um tal efeito, exercem a sua autonomia volitiva de modo livre e informado, sem vícios invalidantes. No segmento em que acolhe o modelo contratual de gestação de substituição, o regime consagrado no artigo 8.º da LPMA disciplina os requisitos do consentimento a prestar por todos os intervenientes no pro- cesso, enquanto pressuposto ou condição de um acordo válido e eficaz – isto é, de um acordo suscetível de conduzir à aplicação do critério especial de estabelecimento da parentalidade estabelecido no respetivo n.º 7 –, bem como as incidências que possam verificar-se no âmbito do processo de gestação em resultado de uma alteração da vontade inicialmente expressa por qualquer das partes, com reflexos sobre o consentimento pres- tado: pelo lado dos beneficiários, o propósito de interromper o processo já iniciado e, pelo lado da gestante, a vontade de não suportar – ou de não suportar mais – a gravidez por conta daqueles. Ao contrário do que é pressuposto pela posição que fez vencimento, o estabelecimento do vínculo de filiação da criança não se encontra sob incidência do modelo contratual da gestação de substituição, não sendo afetável, por isso, nos termos em que o pode ser o desenvolvimento do processo de gestação, pela alteração do sentido da vontade inicialmente expressa pelas partes. Com efeito, ao perfilhar, no n.º 7 do artigo 8.º, um modelo do reconhecimento legal da parentalidade a favor dos beneficiários, a LPMA consagra um critério excecional de estabelecimento da filiação, derrogativo do critério geral do estabelecimento da maternidade e da paternidade fixado no artigo 1796.º do Código Civil, aplicável a todos os contratos de gestação de substituição válidos e eficazes. Tal critério – de acordo com o qual «a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários» –, para além de relevar da opção, inerente ao ordenamento jurídico nacional, de cometer à lei a eleição, de entre os configuráveis ou pertinentes no caso, do título de filiação prevalecente, tem subjacente uma ponderação que assenta em dois aspetos essenciais. O primeiro reside no reconhecimento de que o projeto parental subjacente à gestação de substituição, apesar de participado de forma tão altruísta quanto indispensável pela gestante, não é – nem passa a sê-lo por essa razão – coprotagonizado por esta: tal projeto assenta na vontade de assumir o papel e o estatuto, de pai ou de mãe, dos beneficiários, cujo material genético foi cedido – e só por isso o foi – para per- mitir a gestação de um filho (também) juridicamente seu. O segundo prende-se com a exigência de um vín- culo genético entre o concepturo e, pelo menos, um dos elementos do casal de beneficiários, acompanhada
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