TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

207 acórdão n.º 225/18 É certo que este ambiente cultural tende a evoluir e a atingir-se um estádio em que as técnicas de reprodução assistida ficam inscritas na consciência coletiva como naturais, deixando de ser necessário um princípio-regra de anonimato. Contudo, pertence ao domínio exclusivo do legislador fazer essa avaliação e mudar o sistema, quando entender tal mudança adequada à realidade, mas não ao Tribunal Constitucional, que não pode substituir-se ao legislador nessa avaliação. A comparação com a evolução verificada nos países nórdicos, que revogaram o sistema de anonimato do dador, não constitui qualquer argumento válido no domínio da apreciação da constitucionalidade das normas, apenas comprova que se trata de matéria da com- petência exclusiva do legislador democrático que a regula de acordo com a avaliação que faz da sociedade a que se dirige. E, não obstante diferenças culturais entre Portugal e os países nórdicos, mesmo nestes, com uma mentalidade mais aberta em relação à PMA heteróloga, a quebra do anonimato dos dadores, numa primeira fase, provocou uma redução do número de dadores, resultado que pode dificultar, em Portugal, o acesso das pessoas com problemas de fertilidade aos tratamentos a que têm direito. A esta luz, a opção do acórdão que fez vencimento, de não limitar a retroatividade dos efeitos da decla- ração de inconstitucionalidade do regime de anonimato dos dadores, ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, da CRP, é também problemática, pondo em causa a segurança jurídica e os direitos dos dadores à privacidade e à intimidade da vida familiar, sem que traga qualquer vantagem relevante para as pessoas concebidas por PMA, as quais tendem a valorizar, na sua historicidade e personalidade, sobretudo, o papel dos pais, os únicos com quem têm relações familiares e afetivas, e não o contributo genético do dador. Já em relação ao anonimato das gestantes, o legislador estipulou um regime de ablação total do direito a conhecer as origens, que não passa o teste da admissibilidade constitucional, como se entendeu no acórdão agora proferido. Neste contexto, o peso do direito da criança a conhecer as origens, no juízo de ponderação no conflito com outros direitos fundamentais, deve ser mais elevado, na medida em que existe uma relação entre a gestante e o feto, durante a gravidez, que torna o contributo daquela para a procriação completa- mente distinto do contributo dos dadores de gâmetas, tendo o legislador uma margem de conformação menor para a restrição do direito fundamental a conhecer as origens. Em consequência, o regime de ablação total do direito de conhecer a identidade da gestante não é compatível com o artigo 26.º, n.º 1, da CRP, na parte em que consagra o direito à identidade e à historicidade pessoal. Por outro lado, os hábitos das famílias, nos casos em que recorrem à gestação de substituição, são muito diferentes das práticas adotadas em relação à PMA heteróloga. Num estudo feito em Inglaterra, 94,3% das gestantes mantêm contacto com as crianças que deram à luz e 87,3% relataram que os beneficiários tinham intenção de contar à criança a forma como foi concebida, assim como a maioria dos beneficiários (“pais intencionais”) manifestaram vontade de dizer aos filhos que recorreram a esta forma de gestação, fazendo a maioria, efetivamente, esta revelação às crianças em idade pré-escolar (cfr. Surrogacy in the UK: Myth busting and reform, Report of the Surrogacy UK Working Group on Surrogacy Law Reform, November 2015, pp. 20 e 23). – Maria Clara Sottomayor. DECLARAÇÃO DE VOTO Vencidos quanto às alíneas b) e c) da decisão pelas seguintes razões essenciais: 1. O Tribunal foi chamado a sindicar as normas que admitem o recurso à gestação de substituição, con- tidas nos vários números do artigo 8.º da LPMA, nos termos das quais foi consagrado pelo legislador o que se designou por modelo português de gestação de substituição. Esse sistema normativo decorre de um conjunto de opções do legislador democrático em tema reconhecidamente muito delicado e controverso (nacional e internacionalmente), permeado de questões axiológico-jurídicas de elevada complexidade e dominado pela difícil harmonização entre os direitos dos intervenientes necessários no processo: beneficiários, gestante de substituição e criança.

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