TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
205 acórdão n.º 225/18 que este momento, ficando na discricionariedade da grávida, é incerto, e a incerteza não é compatível com o interesse das crianças e o princípio da estabilidade do estado das pessoas. Anonimato dos dadores de gâmetas Votei vencida nesta questão, por entender que a legislação atual, que permite à pessoa concebida por PMA heteróloga, o conhecimento da identidade do dador através da demonstração judicial de razões pon- derosas e o acesso à informação de natureza genética do dador, se situa dentro da margem de conformação do legislador democrático, que tem a prerrogativa de avaliar as tradições culturais e a realidade social em que a lei vai ser aplicada, e de definir o que considera a solução mais adequada para resolver, de acordo com o princípio da proporcionalidade, o conflito aqui presente entre o direito ao conhecimento da identidade genética e os direitos a constituir família do casal infértil e à paz, intimidade e privacidade da vida familiar. Os argumentos invocados pelo acórdão para justificar a inconstitucionalidade da solução legislativa refletem uma prevalência, não adaptada aos sentimentos destas famílias, da verdade biológica sobre a ver- dade afetiva e social, tanto mais que a lei define, de forma inequívoca, que um dador não é um pai nem é titular dos direitos e deveres próprios da paternidade. Por outro lado, não vale neste domínio, qualquer analogia com o recente alargamento do direito a conhecer as origens no instituto da adoção, nos termos da Lei n.º 143/2015. É que na adoção o Estado procura pais para crianças que já existem e têm uma história anterior à entrega aos adotantes. As pessoas adotadas, na maior parte dos casos, coabitaram com os pais bio- lógicos, a quem foram retiradas pelo Estado, em processos de promoção e proteção de crianças em perigo, no termo dos quais foi proferida uma decisão de confiança com vista a futura adoção. Mesmo nos casos de consentimento prestado pela mãe para a adoção de uma criança recém-nascida, os pais biológicos fazem parte da sua história, pois o conhecimento dos motivos da entrega pode corresponder a uma necessidade forte de reconstrução da historicidade pessoal, sem qualquer paralelo ou semelhança com o conhecimento de um dador, que apenas quis com o seu gesto ajudar um casal com problemas de fertilidade e que nunca teve qualquer relação com a criança, nem a entregou ou abandonou. Não tem valia argumentativa a comparação, feita pelo Acórdão que fez vencimento, com a investigação da paternidade, alegando-se que, no caso do direito a conhecer o dador, a informação sobre a identidade deste está disponível e o dador não será havido como pai, enquanto na paralisação da investigação da pater- nidade após o prazo de prescrição está em causa a proteção da segurança jurídica do pretenso pai e da família que entretanto constituiu. Contudo, a regras de prescrição vigentes na investigação da paternidade consti- tuem uma limitação muito mais forte ao direito à identidade pessoal do que o princípio geral do anonimato do dador (com as exceções legalmente previstas), na medida em que o pretenso pai teve uma história com a mãe do autor da ação (o filho) e com este, podendo até ter conhecido o filho e estabelecido laços de afeto com este, nos casos de posse de estado. Por outro lado, o dano moral sofrido pelo filho impedido de investigar a paternidade, por não ter no seu registo de nascimento a identidade do seu pai, é inexistente no caso da PMA heteróloga, em que a criança tem sempre, legal e afetivamente, um pai. O argumento retirado do regime de prescrição das ações da investigação da paternidade é válido, mas no sentido inverso ao proposto pelo acór- dão: se o Tribunal Constitucional admite a constitucionalidade dos prazos de prescrição para intentar ações de investigação da paternidade, por maioria de razão, devia também admitir a constitucionalidade do sistema atual de anonimato do dador, em que está em causa um indivíduo que apenas quis ajudar no processo de reprodução, mas a quem a lei retira qualquer possibilidade de assumir a paternidade (ou a maternidade, no caso de ser uma dadora), e que nunca teve qualquer relação sexual procriativa com a mãe (ou com o pai) da pessoa concebida com gâmetas de um dador ou dadora. Na ação de investigação da paternidade, está em causa, de forma particular, para além do direito à identidade pessoal do filho no sentido biológico, o direito à historicidade pessoal, bem como um interesse público relevantíssimo: a responsabilização do autor da conceção pelos filhos que gera. Interesse totalmente ausente no caso dos dadores, que o Estado isentou de qualquer responsabilidade parental.
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