TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
204 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL constitucional dos direitos fundamentais exige que este consentimento seja atual, in casu , prestado em momento posterior ao do parto, dentro de um prazo a definir pelo legislador (por razões de segurança jurí- dica e de proteção da infância), não sendo constitucionalmente conforme a norma que prevê a renúncia ante- cipada e irrevogável a estes direitos, isto é, prestada em momento anterior ao da gravidez, conforme estipula o legislador no artigo 8.º, n.º 1, in fine , em conjugação com o artigo 8.º, n.º 7, ambos da Lei n.º 25/2016. Em consequência, reputo também de inconstitucional a última parte do n.º 1 do artigo 8.º, por violação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante e do direito de estabelecer com a criança que gera o vínculo jurídico de maternidade. É certo que esta solução limita a eficácia dos contratos de gestação de substituição do ponto de vista dos interesses, direitos e expetativas dos beneficiários, mas é aquela que, sendo constitucionalmente exigida para a renúncia aos direitos de personalidade, deve valer também para a renún- cia a direitos fundamentais pela gestante, sobretudo, porque estes direitos familiares se referem a um domínio – o estabelecimento da filiação – avesso à autonomia privada e norteado por princípios de ordem pública, que impedem a negociação do nascimento ou da extinção de vínculos de maternidade ou de paternidade. Sendo assim, subscrevo a posição do Acórdão que fez vencimento em relação à declaração de incons- titucionalidade do artigo 8.º, n.º 7, mas entendo que esta acarreta também, por razões de lógica jurídica, a inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, in fine , na parte em que prevê uma renúncia antecipada da ges- tante aos direitos e deveres próprios da maternidade. É que, se não é constitucionalmente conforme que o estabelecimento da filiação seja automaticamente estabelecido, por força da lei, em relação aos beneficiários, sem possibilidade de revogação do consentimento da gestante, também não será, por identidade de razão, constitucionalmente admissível a renúncia antecipada a direitos fundamentais prevista na parte final do artigo 8.º, n.º 1. Contudo, o princípio da livre revogabilidade da limitação ao exercício de direitos de personalidade, porque está em causa o estatuto jurídico de uma criança e os seus direitos fundamentais, entre os quais o direito ao desenvolvimento integral (artigo 69.º, n.º 1, da CRP), tem que ter um limite no tempo. Ora, nesta matéria, o acórdão apresenta uma solução que cria insegurança para a estabilidade das relações afetivas da criança, na medida em que a revogação do consentimento tem por referência o momento da entrega da criança, controlado apenas pela discricionariedade da gestante, o que, potenciando que se desenvolvam laços entre a gestante e a criança, por um período temporal longo e indeterminado no tempo, até o conflito ser decidido por um tribunal, gera uma situação traumática para as crianças, que, por decisão judicial, venham a ser separadas da gestante e entregues aos beneficiários. O consentimento da gestante para a limitação voluntária aos seus direitos de personalidade deve ser atual e, portanto, prestado em momento posterior ao parto e num prazo a estabelecer pelo legislador, por referência ao prazo de seis semanas após o parto de que dispõe uma mulher para consentir, de forma válida e irrevogável, na adoção do seu filho (artigo 1982.º, n.º 3, do Código Civil), o que pressupõe que a mater- nidade é estabelecida em relação à gestante, no momento do nascimento, e a consagração de um modelo de reconhecimento judicial da parentalidade dos beneficiários («pais intencionais»). Este sistema, em que a parentalidade se estabelece por via judicial ( parental orders ), tem vigorado em Inglaterra, desde 1985, sem ris- cos, com as gestantes a procederem à entrega das crianças e a consentirem na transferência da parentalidade para os beneficiários (cfr. Surrogacy in the UK: Myth busting and reform, Report of the Surrogacy UK Working Group on Surrogacy Law Reform, November 2015). Não partilho da asserção do acórdão que fez vencimento, segundo a qual a inconstitucionalidade consequente do n.º 7 do artigo 8.º não põe em causa o «modelo por- tuguês» de regulação da gestação de substituição, pois não é conceitualmente possível um sistema em que a filiação, em relação aos beneficiários, por um lado, seja estabelecida por via legal automática, no momento do nascimento, e, por outro, possa ser extinta pela revogação do consentimento da grávida, passando a vigorar o critério geral da filiação materna (artigo 1796.º, n.º 1, do Código Civil), por força de um ato de vontade unilateral. Também não seria viável que a parentalidade fosse transferida automaticamente da gestante para o casal infértil, por efeito da lei, no momento da entrega, sem um ato de reconhecimento judicial, uma vez
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