TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
200 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL nem tudo se resume ao Direito, e por outro lado, que a Constituição protege essas outras dimensões que são afetadas (mesmo) por consequências não jurídicas resultantes da ausência de confidencialidade relativamente à dádiva. Relembre-se, sobretudo por ser um facto incontornável, que sem essa decisão de doar, – tomada em circunstâncias de garantia de sigilo, e que constituiu, ela mesma uma manifestação do livre desenvolvimento da personalidade por parte do dador, da sua autodeterminação exercida com base nessa garantia –, aquele que agora pode reclamar um direito à curiosidade não existiria. Acresce que, se é possível admitir que não poderão sentir-se demasiado devassados, por haver sido antecipadamente afastado o sigilo, aqueles que, depois desta decisão, decidam proceder a doação, tendo de passar a contar com o surgimento na sua vida, mesmo que sem vínculo jurídico, de forma que não conse- guirão antecipar, de pessoas que ajudaram a conceber, já será, a meu ver, absurdamente pesado impor uma tal solução a quem se dispôs a dar de si, de forma totalmente livre de qual qualquer amarra, mesmo que não jurídica, em virtude das garantias de sigilo então em vigor. As diferentes circunstâncias da doação deveriam determinar um diferente equilíbrio, obrigando a distinguir direitos de reserva dos dadores e direitos de conhecimento dos gerados por dádiva, em função do segredo em vigor ao tempo da doação. Assim sendo, defendi que se limitassem os efeitos da decisão de inconstitucionalidade. 3. Considero, aliás, que o levantamento do sigilo na dádiva de gâmetas ou embriões, em nome de uma defesa exacerbada de um direito à curiosidade, poderá abrir uma caixa de Pandora com consequências galo- pantemente gravosas para os direitos dos dadores, com reflexo especial, por força desta decisão do Tribunal, e da recusa de limitação dos seus efeitos, para o caso daqueles que doaram, ainda, em situação de anonimato reconhecido (e, porque não, a reflexão acerca das consequências para aqueles que receberam a doação, na convicção da manutenção desse mesmo anonimato, pelo desejo de evitar a interposição de uma outra histó- ria pessoal, implicando (legítimos) deveres e direitos de outrem). Afinal, os dadores, mais cedo ou mais tarde, poderão, também, vir a ser confrontados pela possível aspiração daqueles que, gerados com recursos à sua dádiva, e mesmo (ainda) sem consequências jurídicas (paternidade), queiram não apenas conhecer a identi- dade do pai/mãe biológico, mas, também, que a sua identificação esteja (um dia) publicamente disponível (e ainda que não correspondendo à parentalidade jurídica/social), designadamente, mas não necessariamente, nas situações de monoparentalidade. Embora não seja essa a questão aqui em causa, e não cumpra decidi-la, é fácil antecipá-la, e, a meu ver, impossível deixar de a ter em conta quando se pondera a questão do sigilo relativamente àqueles que doaram gâmetas ou embriões na expectativa da confidencialidade da dádiva. – Catarina Sarmento e Castro. DECLARAÇÃO DE VOTO Parcialmente vencida quanto às alíneas e) e g) pelas seguintes razões essenciais: Tal como a posição que fez vencimento, considero, em linha com a orientação perfilhada já na jurispru- dência deste Tribunal, que o direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, contempla o direito à historicidade pessoal, abrangendo este, no caso das pessoas nascidas com recurso a técnicas de PMA heteróloga, o direito ao conhecimento da identidade genética, enquanto direito ao conhe- cimento da identidade daqueles cujo material genético integra a constituição genómica da pessoa nascida, e, no caso das pessoas nascidas através do recurso à gestação de substituição, o direito ao conhecimento da identidade epigenética, enquanto o direito ao conhecimento, em toda a sua integralidade, do processo onto- genético que antecedeu o respetivo nascimento. Em inteira sintonia com a posição maioritária, partilho igualmente do entendimento segundo o qual, consistindo a identidade pessoal «no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada
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