TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

198 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 5. Defendi que, no caso da doação de gâmetas e de embriões, a invocação do direito à historicidade pessoal por quem foi gerado com recurso a PMA carece de densidade suficiente que possa justificar a sua proteção a todo o custo. Não se vislumbra para este direito lesão significativa, excessiva, o que resulta da ausência de interação relacional subjacente ao próprio processo, o que, necessariamente, enfraquece a invo- cação de uma história em comum. Assim, a meu ver, nestas circunstâncias, a vertente do direito à identidade pessoal daquele que foi gerado com recurso a PMA, que o Acórdão protege, degrada-se num mero direito à curiosidade. E se, noutros campos, o direito à curiosidade pode ser merecedor de proteção – exatamente quando nos confere o direito a conhecer informações que nos respeitam, enquanto exercício de direito à autodeterminação informativa – ele não pode sobrepor-se, sem mais, se as informações em causa respeitam, não apenas ao próprio, mas também a alguém que, em certas circunstâncias, nem poderia contar com a sua revelação. Pelo contrário, a lesão imposta aos direitos do dador ou, inclusivamente, dos pais jurídicos, pela revelação da identidade daquele, pode apresentar consequências fortemente negativas. Atente-se ainda, que as circunstâncias que justificam este dever de segredo na doação de gâmetas ou embriões não se podem confundir com as que relevam relativamente à investigação da paternidade, ou à adoção, em virtude, desde logo, da diferente densidade do direito à historicidade que está subjacente em cada um dos casos. A meu ver, a historicidade implica um devir social, relacional: um sujeito, para viver e contar, outro sujeito, para ouvir e conhecer a história (que será o interessado, a criança gerada). Na doação não se esta- belece esse relacionamento social. Não há um viver e um contar. A doação anónima não tem história que o relacione com quem vem a ser gerado. É um contributo fundamentalmente biológico, assente na técnica, ausente de relacionamento social. Por isso, quem é gerado não tem de saber a identidade de quem doa. É excessivo que tal se exija a quem doa (e, mais ainda, que se exija a quem anonimamente doou, que se veja, agora, devassado sem que com isso pudesse razoavelmente contar). Admito que possa ser exigível que se revele àquele que assim foi concebido, mais tarde, e se perguntado, qual foi a sua origem, o método de conceção, as suas características genéticas (como garantia do direito à identidade genética), designadamente para despistar consanguinidade – no fundo, a origem genética, o património genético, no sentido de características –, mas não se justifica, para tal, a revelação da identidade do dador. A identificação, ela mesma perturbadora de direitos do dador, só deve prevalecer em razão de uma historicidade subjacente, e para tal, exige-se, a meu, um passado relacional, social, povoado de memórias que possam condicionar o devir. Ora, na doação não há relação social que justifique a divulgação. E isto justifica suficientemente a distinção face a outras situações em que merece proteção um direito à identidade pessoal na sua vertente de historicidade pessoal, sendo, nalguns casos, a meu ver, imprescindível essa identificação (para definição da paternidade), ou possível (como na adoção), por isso não encerrando esta diferenciação uma violação da igualdade. Considerei, por tudo isto, que a solução que impõe a obrigação de que se proceda à identificação dos dadores, no caso da PMA, vai muito além do necessário para cumprimento, no essencial, do direito à iden- tidade pessoal, ao mesmo tempo que põe em causa outros direitos fundamentais, que confirma de forma excessiva. 6. Por partir da descrita conceção quanto ao direito à historicidade pessoal, defendo uma solução dis- tinta relativamente à gestação de substituição, no que ao segredo respeita. Aí, sim, haverá uma história entre pessoas, tanto mais que a não onerosidade que considerei indispensável para tal contribuirá fortemente: haverá um viver para contar. Comparado com a doação de gâmetas e de embriões, o direito à historicidade pessoal, no que à interven- ção da gestante de substituição na gestação e no nascimento diz respeito, é merecedor de diferente valoração, o que se reflete na solução que preconizo para a questão da constitucionalidade da norma respeitante ao sigilo nesse contexto. Por ser assim, subscrevi a decisão de inconstitucionalidade nessa parte.

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