TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
192 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Trata-se aqui de afirmar uma outra visão desse modelo – de um uso fora desse contexto tão particu- lar – assente na transposição da ideia de precaução para um quadro de defesa antecipatória requerido pela natureza única do princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto verdadeiro “arquétipo” central do nosso modelo constitucional – usamos aqui a ideia de “arquétipo” com o mesmo sentido de Jeremy Waldron: “[q]uando uso o termo «arquétipo», refiro-me a uma disposição particular num sistema de normas que tem um significado que vai além do seu conteúdo normativo imediato, uma significação que deriva do facto de ela resumir ou tornar vivo, para nós, o sentido, o propósito, o princípio ou a política de toda uma área do direito” [“Torture and Positive Law: Jurisprudence for the White House”, in Columbia Law Review, Vol. 105, N.º 6 (Oct., 2005), p. 48]. É à luz desta construção que entendemos – e subscrevemos – a advertência formulada por Rui Medeiros, em anotação à alínea e) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP, quanto ao sentido da expressa opção constitucional de sinalizar, quanto à procriação medicamente assistida, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana: “[…] independentemente da controlabilidade dos juízos de prognose do legislador democrático, afigura-se duvi- doso que, em domínios tão sensíveis num Estado de direito, em que uma disposição legal pode abrir a porta a soluções suscetíveis de comprometer irremediavelmente o respeito pela dignidade de toda e qualquer pessoa humana, não se impusesse justamente, porventura em nome de uma ideia de prevenção ou de precaução, um ‘ strict scrutiny test ’ […]” (Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, Lisboa, 2017, p. 988). 2.3. São estas, no essencial, as razões que me afastaram, não obstante o que referi nos pontos 1.1., 1.1.1. e 1.1.2. deste voto, da posição com base na qual se formou a maioria que originou o pronunciamento deci- sório do Tribunal. Divirjo desta, essencialmente – e trata-se de um aspeto não circunstancial quanto à fundamentação, embora com escasso reflexo nas normas efetivamente invalidadas –, da leitura que, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, principalmente na sua referenciação no artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da CRP, é feita, quanto à existência da figura da gestação de substituição, definida nos termos gerais previstos no n.º 1 do artigo 8.º da LPMA (norma que o juízo do Tribunal mantém), e depois concretizada nos n. os 2 e 3 do mesmo artigo (só consequencialmente invalidadas) e, bem assim, nos n. os 4 a 12 (só parcialmente invalidadas e com base em parâmetros que aceito, mas que não abarcam o problema que, a montante, identifico). Reconheço que o presente Acórdão, numa argumentação poderosa e cheia de rigor, atribuiu à dignidade da pessoa humana um sentido substancial, não construindo a sua argumentação – e estou a citar o voto de vencido da Conselheira Maria Lúcia Amaral no Acórdão n.º 101/09 – “[…] a partir da ausência (e não da necessária presença) [de um] sentido substancial”. O problema que me interpela nesta situação, e que está na raiz da minha divergência, é o sentido subs- tancial aqui alcançado, na sua relação com a questão da gestação de substituição, sentido esse no qual não encontrei espaço de acomodação da posição que sustento. Creio – e cito Paulo Otero (“A Dimensão Ética da Maternidade de Substituição”, in Direito & Política , n.º 01, outubro – dezembro, 2012, p. 91) – que “[n]uma temática delicadíssima como a maternidade de substituição, é sempre possível manter a porta fechada, nunca se consegue, todavia, mantê-la entreaberta – a dimensão ética do problema aconselha a que a porta esteja fechada e a dimensão jurídica recomenda-o, viva- mente”. – José António Teles Pereira. DECLARAÇÃO DE VOTO 1. Voto o juízo de inconstitucionalidade constante da alínea e) da Decisão, que versa as normas do n.º 1, na parte em que impõe uma obrigação de sigilo absoluto relativamente às pessoas nascidas em consequência
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=