TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
191 acórdão n.º 225/18 – nível por vezes identificado como expressão de um efeito de trunfar sempre no confronto com os outros direitos. Este modelo interage bem com a questão do perigo, no sentido em que postula a ideia de impossibili- dade de gestão do risco de violação, reafirmando a tutela da dignidade da pessoa humana a esse nível anteci- patório, situando a violação num círculo exterior, mais alargado relativamente ao núcleo central de proteção, no qual se detete vivamente, como aqui ocorre, a relativização dos valores base, por via da colocação destes numa situação de insegurança existencial – de perigo – com a qual – com o qual – a natureza de princípio estruturante da nossa ordem constitucional da dignidade da pessoa humana não suporta conviver. Matthias Klatt e Moritz Meister exemplificam este modelo de tutela recorrendo à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Chahal c. Reino Unido (queixa n.º 22414/93), decidido em 15 de novembro de 1996. Neste, o mero risco da expulsão de uma pessoa para um país onde não fosse segura a exclusão da possibilidade de sujeição a tratamentos cruéis – em que não fosse seguro inexistir a pos- sibilidade de ocorrer violação do artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (proibição da tortura) –, já equivalia a essa violação (a proibição da tortura situa-se no âmago do princípio da dignidade da pessoa humana), bloqueando a análise de contra-argumentos relacionados com a imputação de atividades terroristas ao requerente [cfr. os pontos 79/81 da Sentença, culminando no ponto 82: “[d]aí [da existência do mero risco de colocação em perigo dos valores subjacentes ao artigo 3.º da Convenção] que não tenha o Tribunal, sequer, que entrar na consideração das alegações do Governo, não estabelecidas mas seguramente efetuadas de boa fé, quanto às atividades terroristas do requerente e à ameaça que ele representa para a segu- rança nacional” (cfr. The Constitutional Structure of Proportionality, cit., pp. 32/33)]. 2.2.2. Importa retornar à ideia, já antes aflorada em diversas passagens deste voto, quanto à ligação do elemento perigo à intensidade da tutela do princípio da dignidade da pessoa humana, decorrente do seu caráter absoluto. Ora, sendo certo que o princípio expresso no artigo 1.º da CRP constitui um elemento cen- tral, verdadeiramente arquetípico, da nossa ordem constitucional, existe no nosso texto da Constituição, na concretização deste princípio no domínio da procriação assistida, uma referência expressa, um elemento adi- cional carregado de significado. Referimo-nos à cominação pelo legislador constitucional, que empreendeu a quarta revisão de 1997, da obrigação de salvaguarda (que etimologicamente significa: proteger, defender, livrar de perigo) da dignidade da pessoa humana, no quadro da regulação da procriação assistida, na alínea e) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP, uma opção que J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, caracterizando um dos aspetos centrais da quarta revisão, qualificam como “[…] positivação da constituição biomédica […]” (CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Coimbra, 2007, p. 36). Trata-se de uma incidência que reputamos de muito significativa, no sentido em que nela sedeamos um tipo de tutela alargada ao perigo, dirigida a situações nas quais, a existência de alguma ambiguidade do elemento degradação não afaste, todavia, a presença de uma situação cuja materialização esteja objetivamente assente em fatores que revelem instrumentalização, coisificação e redução de uma pessoa à condição de meio dos fins de outrem. Todas estas incidências se encontram no âmago dos perigos éticos envolvidas na biotec- nologia aplicada à reprodução humana, domínio no qual o imperativo tecnológico (“o que pode ser feito deve ser feito”) não pode guiar, à margem de outras considerações, as opções legislativas (Sidney Callahan, “ The Ethical Challenges of the New Reproductive Technologies ”, cit., p. 81). Vale neste plano, acrescidamente – e cremos ser essa a mensagem normativa presente na alínea e) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP – a ideia de cautela, o que podemos identificar como princípio da precaução (cfr. Alain Pottage, “The Socio-Legal Implications of the New Biotechnologies”, in Annual Review of Law and Social Science, Vol. 3, 2007, p. 333), retirado ( rectius , subtraído) este princípio, como modelo de deci- são legislativa, do âmbito técnico em que se forjou e é normalmente feito atuar – paradigmaticamente o do direito do ambiente (é ao uso do modelo nesse específico domínio que se referem as críticas de Cass Sunstein, Laws of Fear, Cambridge University Press, Cambridge UK, 2005).
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