TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
190 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ao serviço de fins alheios [3]. Sendo efetivamente este o contexto em que a violação da dignidade da pessoa humana emerge como desvalor – o da proibição da efetiva degradação da pessoa no seu intrínseco valor –, não posso deixar de anotar, enunciando já uma ideia que desenvolverei adiante, que o âmbito protetivo aqui inequivocamente sinalizado pelo legislador constitucional [no artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da CRP], exige, pela intrinsecamente perigosa relativização de valores que este tipo de situações envolve, um plus de prote- ção, postulando um círculo alargado de defesa – só possível num modelo assente na ideia de precaução legis- lativa – que inclua uma tutela antecipatória do perigo, referido a situações como estas, com grandes margens de desconhecimento das consequências induzidas, que objetiva e intensamente expressem a presença de fato- res de instrumentalização suscetíveis de colocar em crise existencial o valor da dignidade da pessoa humana. É, pois, com esta base, e por referência ao modelo decisório correspondente à “fórmula do objeto”, enunciado por Günter Dürig nos anos 50 do século passado (cfr. Aharon Barak, Human Dignity… , cit., p. 147, nota 36, contendo esta a enunciação originária por Dürig da “fórmula do objeto”, no quadro inter- pretativo do artigo 1.º da Constituição Alemã), que se afirma, relativamente à dignidade da pessoa humana, o caráter de “direito absoluto”. Descrevendo esta asserção numa perspetiva dinâmica, na sua interação com outros valores, tem esta qualificação como direito absoluto o sentido da afirmação de correspondência do respetivo valor (no que em função dele se exclui) a um espaço de coincidência, exata, entre o seu conteúdo e a extensão da proteção que confere. Subtrai-se, assim, a afirmação da dignidade da pessoa humana a limitações e, consequentemente, à possibilidade de ponderação com outros direitos. Isto no sentido em que uma hipotética operação relacional de “acomodação” a outros valores – uma operação de “ponderação” que posicione, conflitualmente, a digni- dade da pessoa humana face a outros direitos – já alcança o patamar corresponde à sua violação, pois pressu- põe como possível resultado o que já não expressará o caráter absoluto do valor (Ahron Barak, Proportiona- lity. Constitutional Rights and their Limitations, Cambridge University Press, Cambridge, 2012, pp. 27/29). Daí que a identificação dos pressupostos fáticos do princípio da dignidade da pessoa humana deva ser “estreita”, no sentido de referida a atos e situações muito específicas, necessariamente escassas (refere-se, por vezes, a dignidade da pessoa humana, neste plano, como “valor único”), muito expressivas na visibilidade conflitual da sua relação com o valor em causa. Constitui esta estreiteza da base de identificação “o preço a pagar” pela fortíssima intensidade da tutela que a absolutização confere a todos e exige do legislador (Dieter Grimm, “Dignity in a Legal Context and as an Absolute Right”, in Understanding Human Dignity, Cristo- pher McCrudden (ed.), Oxford University Press, Oxford, 2013, pp. 388/389). Note-se, porém, que mesmo a admissão de uma não total insensibilidade da dignidade da pessoa humana a algum tipo de ponderação, a afirmação de que o caráter absoluto desta não pode excluir, à partida e em todas as situações, a existência de alguma, estreita, margem de balanceamento (é o caso de Alexy), não deixa de trazer aparelhada a afirmação de que a ponderação em tal quadro, só é desencadeada sob o impulso de “condições extremas” e assenta numa margem de possibilidades muito reduzida, que só pode ter lugar na avaliação concreta de um determinado caso, nunca na perspetivação abstrata de uma solução legal, como pressupõe o tipo de fiscalização aqui em causa: “ [b]alancing, however, may only take place relativized to con- crete cases”; “[…] it is impossible to balance principles abstractly, without referring to concrete cases ” (Matthias Klatt, Moritz Meister, The Constitutional Structure of Proportionality, Oxford University Press, Oxford, 2012, pp. 31/32). Seja como for, o modelo de controlo jurisdicional que o princípio da dignidade da pessoa humana usualmente convoca, muito especialmente no plano das jurisdições constitucionais, tende a afastar à partida a ideia de balanceamento – recusando-a mesmo – por entender que um raciocínio desse tipo já envolve a aceitação da ideia, antitética do nível de proteção qualificado aqui exigido, que está na essência do princípio [3] É com esta base, aliás, que alguns Autores excluem a adequação da “fórmula do objeto” às questões relativas à bioética e, concretamente, a servir de base à aferição de questões respeitantes a direitos reprodutivos, e concretamente à gestação de substituição. É o caso, referido no Acórdão, de Jorge Reis Novais ( A Dignidade da Pessoa Humana, vol. II, Dignidade e Inconstitucionalidade , Coimbra, 2017, pp. 120/121).
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