TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

189 acórdão n.º 225/18 2.2. O argumento que aqui se afirma é este: a completa desconstrução da ideia de “maternidade” relati- vamente à gestante é alcançada à custa de uma intolerável presença de fatores que objetivamente expressam uma instrumentalização desta, lançando uma insustentável incerteza sobre a base em que assenta o valor constitucional da dignidade da pessoa humana. Num outro plano, não deixaremos também de sublinhar que as vicissitudes projetivas de tal desconstrução potenciam fatores de incerteza, quanto à criança gerada, que não podem ser negligenciados, criando perigos – desde logo pela impossibilidade de controlo de situações que venham a envolver não nacionais no processo de gestação de substituição – cujo caráter algo vago não deixaria de indicar a adequação de uma abordagem cautelosa, de uma estratégia de precaução nas opções do legislador, inibindo soluções legislativas que envolvem a projeção destes perigos. Com efeito, importa não esquecer que a gestação de substituição constrói e desencadeia intencional- mente, quanto aos elementos aqui referidos, a situação portadora do potencial de perigo, não procurando resolver, como sucede com a adoção, um problema pré-existente para o qual se não contribuiu [cfr. Sidney Callahan, “The Ethical Challenges of the New Reproductive Technologies”, in Health Care Ethics: Critical Issues for the 21st Century, Eileem E. Morrison, Beth Furlong (ed.), Sudbury, 2009, p. 82]. Ocorre nas situações de gestação de substituição, pela própria natureza das coisas – do meio necessa- riamente convocado à abordagem da patologia em função da qual ela é admitida – uma forte presença de elementos que, inarredavelmente, expressam a instrumentalização de uma mulher pelo uso do seu corpo e da sua fisiologia, como meio de alcançar os fins de terceiros. É assim que a situação convoca, em si mesma (pela necessidade de a tornar funcional no seu objetivo), construções jurídicas que não podem deixar de assentar numa base em si mesma desvaliosa de um ponto de vista constitucional, aferida face ao sentido muito espe- cífico que o artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da CRP, introduziu na revisão constitucional de 1997, no quadro relacional estabelecido entre a procriação assistida e o princípio da dignidade da pessoa humana. É com este sentido que a base prática em que assenta – necessariamente assenta – a construção da ges- tação de substituição, nos termos em que esta é definida no n.º 1 do artigo 8.º da LPMA, não nos permite projetar uma salvaguarda suficientemente densa e segura da dignidade da pessoa humana, devendo, por isso, ser excluída, numa lógica construída em torno da ideia de precaução. Esta indica ao legislador – e por alguma razão a maioria dos legisladores do nosso espaço envolvente europeu não tem seguido o caminho agora trilhado entre nós – uma postura de abstenção quanto à adoção de soluções legislativas como estas, em que o espaço de relativização dos valores em causa é tão amplo que potencia, fortemente, um uso desviado, verdadeiramente impossível de controlar. Envolve a gestação de substituição, de facto, mesmo no quadro de referência construído pelo legislador português, a colocação em perigo (logo: uma insuficiente salvaguarda) do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este colocado num estado de insegurança existencial ao qual se não pode entregar, confiando que permanecerá efetivamente protegido, um valor desta grandeza. 2.2.1. Vale este argumento no quadro referencial que concretiza usualmente, na teoria constitucional, o modelo de identificação da base subjacente ao valor da dignidade da pessoa humana, enquanto arquétipo constitucional. Referimo-nos ao modelo, de raiz Kantiana (cfr. Michael Rosen, Dignity, Harvard University Press, Cambridge, Mass., Londres, 2012, pp. 20/21), que se expressa na chamada “fórmula do objeto”, ao excluir – e excluir situações corresponde, precisamente, à funcionalidade do princípio, decorrente da sua radicação histórica, no período pós-II Guerra – o que envolve ou induz a redução de uma pessoa à catego- ria de objeto (o efeito de “objetificação” desta, intencional ou meramente consequencial), tornando-a num mero meio, fundamentalmente fungível, no quadro de um processo de instrumentalização a fins alheios, excluindo-a da consideração como fim em si mesma [cfr. Aharon Barak, Human Dignity. The Constitutional Value and the Constitutional Right, Cambridge University Press, Cambridge, 2015, pp. 123 e 146/147]. Note-se que a ideia de “objetificação”, proscrita pela “fórmula do objeto”, é habitualmente reconduzida, como se refere no texto do Acórdão, à ideia de degradação da pessoa por via da presença atuante das situa- ções prototípicas que expressem instrumentalização e utilização de alguém, exclusivamente, como um meio

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