TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

188 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL forma lícita e a imputação de maternidade a quem realize um contrato configurador de ilícito criminal”. Trata-se de um efeito que, como sublinha a Autora, seguramente não foi pretendido, mas que é impossível de evitar: “[s]ó é gestante de substituição a pessoa que contrata licitamente. Quem acorda gerar uma criança de forma ilícita e criminosa será mãe […]”. É também assim – com um sentido, sempre latente, de precarização da posição da gestante –, que o desencadear do processo correspondente à situação de gestação de substituição, assenta numa captura do consentimento da gestante (que verdadeiramente é uma renúncia a direitos da personalidade próprios e alheios, completamente desfasada do estreito espaço em que a nossa ordem jurídica tolera a limitação voluntária destes, cfr. o artigo 81.º do Código Civil) numa fase muito precoce do processo, quando ainda não há sequer gravidez (cfr. artigo 14.º, n.º 5, ex vi do n.º 4, da LPMA), numa pretensão de imunizar ou de garantir o objeto do contrato (que é a criança), daí em diante, às vicissitudes da interação da gestante com o ser humano que por ela vai ser gerado. É assim que se relativiza fortemente a ideia de voluntariedade altruística na adesão à situação – traço fundamental que se associa ao chamado modelo português de gestação de substituição – situando o consen- timento/renúncia da gestante num momento muito prematuro de um processo que vai ser longo e carregado de significado, esgotando o exercício desse consentimento/renúncia logo aí – esgotando-o num momento –, através de um exercício único logo definitivamente capturado nas suas relevantíssimas consequências, quando esse valor – expresso no exercício de uma liberdade altruística – só traduziria verdadeiramente o elemento que, na essência da posição do Tribunal, tem a virtualidade de dissipar a mácula originaria da ins- trumentalização se – e só enquanto – se mantivesse ativo. É certo que o pronunciamento decisório do Tribunal eliminou esse efeito na alínea b) do dispositivo, mas, não obstante, a construção desse resultado – que, assentando em problemas efetivamente presentes neste regime, encarei como “segunda questão” colocada pelo afastamento da minha posição de base – foi alcançada num quadro argumentativo que não assumiu a projeção direta da proibição absoluta, que está na essência do princípio da dignidade da pessoa humana, de recondução das pessoas à categoria de meios instrumentais da realização de fins alheios, mesmo quando isso pode ser visto como expressão de uma opção própria e, até, como o exercício de uma liberdade. Vale a este respeito o que este Tribunal já afirmou, e que permanece atual, no Acórdão n.º 144/04 – e estou a construir um argumento, não a afirmar qualquer simi- litude de situações que, obviamente, em nada aqui se verifica –: “[…] uma ordem jurídica orientada por valores de justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações […] cujo «princípio» seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física […]), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o estado português na igual dignidade da pessoa humana”. Com efeito, constitui meu entendimento que todas as “projeções secundárias” – trata-se de uma ima- gem – que o Tribunal direta ou consequencialmente eliminou, através do presente Acórdão, constituem isso mesmo: decorrências inevitáveis geradas pela essência básica da construção sedeada no n.º 1 do artigo 8.º da LPMA. Esta, com efeito, por si e na compaginação com os n. os 2 e 3 do mesmo preceito, contém, pelo menos (e já é muito num domínio como este), o germe – a expressão de um perigo potenciado por um deficit de sal- vaguarda – a que a concretização de um modelo – creio eu, de qualquer modelo – de gestação de substituição necessariamente conduz, pela dinâmica própria inevitavelmente associada à sua funcionalidade: as expres- sões paroxísticas que o Tribunal, trilhando um caminho diverso daquele que primordialmente propugnei, e que aqui sustento explicitando a minha divergência, acabou por excluir. E é sintomático a este respeito que “quase nada” do regime do artigo 8.º da LPMA tenha sobrevivido ao julgamento do Tribunal. Sobreviveu, todavia, a questão básica, o problema de fundo, que se expressa na aceitação de um modelo gestacional trian- gular que pressupõe situações “[…] em que [uma] mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”.

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