TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
187 acórdão n.º 225/18 services”, in The Oxford Handbook of Reproductive Ethics, Leslie Francis (ed.), Oxford University Press, New York, 2017, p. 128]. 2.1. O que vem depois, o estabelecimento da relação de filiação da criança objeto da obrigação de entrega aos beneficiários, afastando a regra que referiria essa maternidade à gestante (artigo 1796.º, n.º 1, do Código Civil), resulta de determinados pressupostos legais condicionantes da situação, estabelecidos – estabelecidos ad hoc – para atuarem ao longo do procedimento, conducentes à construção dessa forma de paternidade e de maternidade-outras agora introduzida no nosso ordenamento jurídico através do n.º 7 do artigo 8.º da LPMA, concretizando a finalidade da gestação de substituição. Ora, valendo essas opções, objetivamente consideradas, com um inegável sentido de precarização da posição da gestante no quadro da gravidez por ela suportada, no confronto com a posição dos beneficiários relativamente a esse facto (facto corporalmente próprio da gestante), percebe-se ter o legislador pretendido prevenir uma hipotética patologia do contrato de gestação, em que se gerasse algum concurso de preten- sões à criança, criando uma espécie de “melhor título” dos beneficiários a esta. Trata-se de (compreende-se como) uma estratégia interna de defesa da intencionalidade que preside à opção legal assumida, através da construção normativa de uma espécie de garantia, criando uma regra de decisão de conflitos alocativos da criança, que pretende evitar situações do tipo da que nos anos 80 do século passado – o chamado caso Baby M , decidido em 1988 pelo Supremo Tribunal de New Jersey – deu visibilidade à problemática das “barrigas de aluguer”. Evidenciam essas opções, todavia, o problema originariamente presente em toda a situação: a constru- ção de um modelo legal que envolve e enquadra a redução da gestante à condição de instrumento gestacional alheio. É com este sentido que se proíbe a presença de material genético (de ovócitos) da gestante na execução da técnica de PMA que originará a gravidez e a gestação, erigindo desta forma uma base genética para a afir- mação da ideia, que é central na situação de gestação de substituição, de não poder estar em causa um filho da gestante, evidenciando que a função desta – do seu corpo e de todas as sua funções orgânicas convocadas pela gravidez – se limita à circunstância de servir de veículo da gravidez e do parto de filho alheio, associando à gestação de substituição um sentido “maquinalizador” e um efeito de “objetificação” e de “comodificação” do corpo da mulher e da fisiologia desta. Todavia, essa instrumentalização – o assentimento contratual a ela – não deixa de ter implícita uma espécie de “cláusula oculta” de maternidade da gestante, num quadro consequencial referido a determinadas vicissitudes da situação, que acaba por induzir esse efeito algo paradoxal, mas que não deixa de ser sinto- mático da precarização da posição da gestante (e, intensamente, também da criança). É que, nas situações que “aparentem” uma gestação de substituição, mas que em algum aspeto se afastem do complexo condicio- namento legal tecido ao longo do artigo 8.º da LPMA, ocorre a nulidade dos negócios jurídicos em causa (artigo 8.º, n.º 12, da LPMA), preenchendo-se, nas suas múltiplas formas, os tipos legais de crimes previstos no artigo 39.º da LPMA (no caso da gestante, cfr. os correspondentes aos n. os 2 e 4). Conduzirão estas situa- ções à atribuição da maternidade à gestante, tornando claro que o efeito de precarização do estatuto desta continha implícita, a tal “cláusula oculta”, expressa na reserva do estatuto de mãe, com um sentido in malam partem, para a frustração (nulidade) da gestação de substituição lícita. Assim, por via desse desvalor contra- tual a gestante adquirirá, pelo facto do nascimento, o estatuto de mãe – mãe que, em última análise, (só) o é por via de um contrato nulo que configura um ilícito criminal –, assim se associando uma etiquetagem desvaliosa, um efeito de estigmatização – o decorrente de um ilícito criminal –, à maternidade, apanhando nesse efeito, de permeio, a posição da criança. Esta situação foi corretamente detetada e descrita por Maria Margarida Silva Pereira (“Uma gestação inconstitucional: o descaminho da Lei da Gestação de Substitui- ção”, in Julgar Online, janeiro de 2017, p. 14): “[t]emos, consequentemente, que o entendimento legislativo assenta na imputação de gestação de substituição a quem contrata a entrega da criança aos comitentes de
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