TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
186 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Embora essa dissensão acabe por ter uma expressão muito parcial nas concretas normas abrangidas nos diversos juízos de inconstitucionalidade constantes do dispositivo, baseia-se numa questão de fundo, que se projeta em todas as normas que pressupõem a situação definida no n.º 1 do artigo 8.º como permitida. Esse problema de fundo corresponde, aliás, ao meu motivo de rejeição da conformidade constitucional da opção central – do objeto único – da Lei n.º 25/2016 ao pôr fim à exclusão (à proibição absoluta) do que sempre foi designado entre nós (seguindo uma terminologia consagrada e comum na identificação da situação) como maternidade de substituição[1]. Sublinho estar em causa, com a sequência das normas que agora integram os três primeiros números do artigo 8.º da LPMA, conjugando o sentido prescritivo de cada uma delas, o seguinte quadro permissivo criado pelo legislador de 2016: considera-se gestação de substituição permitida (i) qualquer situação em que uma mulher, mediante negócio jurídico (contrato escrito, vide o n.º 10) celebrado com quem a Lei designa como “beneficiários”[2], se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto a esses beneficiários, renunciando (ela gestante) aos poderes e deveres próprios da maternidade; isto ( ii) por via de gravidez originada por uma técnica de PMA com recurso aos gâmetas (células sexuais) de, pelo menos, um dos beneficiários, mas sempre com exclusão da intervenção nessa técnica de qualquer ovócito (célula germinal feminina) proveniente da gestante; sendo que ( iii) o negócio jurídico em causa, só sendo possível a título excecional, assume natureza gratuita e pressupõe, do lado dos beneficiários, a verificação de um caso de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão impeditiva, de forma absoluta e definitiva, da gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem. É do somatório destes pressupostos – todos contidos nos n. os 1, 2 e 3 do artigo 8.º, na redação ora intro- duzida na Lei n.º 32/2006 – que emerge, primordialmente, a licitude da situação de gestação de substituição. A estes requisitos acrescerão todos os outros elementos, positivos e negativos, contidos nos restantes nove números do mesmo artigo 8.º, conjugados com outras disposições da LPMA, dando origem a uma situação complexa, no plano da concretização e das consequências, mas cujo sentido acaba por ser de apreensão muito simples: trata-se da cedência por uma mulher da sua função gestacional, desencadeada por uma tecnologia reprodutiva assente em material genético obrigatoriamente alheio, em vista da obtenção de uma criança (em vista da obtenção de uma gravidez que culmine no nascimento de uma criança) para entrega desta a um casal de beneficiários (pressupomos aqui a definição “efetuada” pelo CNPMA, referida na nota 2, supra ), envol- vendo essa entrega a renúncia pela gestante ao estatuto de mãe. Vale a opção legal que assim se expressa, pois, pela sua finalidade precípua, que é a de propiciar a alguém uma criança por via contratual, através da cedência, em vista desse específico fim, de um processo gestacional alheio, que assim é objeto de alienação (de transferência para um domínio alheio na sua funcionalidade e resultado). Daí que se possa afirmar, relativamente à construção da figura (negocial/contratual) agora intro- duzida na nossa ordem jurídica, que o objetivo primordial desta corresponde exatamente ao resultado visado: a criança em si mesma (o objeto da obrigação de entrega, a que se refere o n.º 1 do artigo 8.º), funcionando a prestação do “serviço de gravidez” e a consequente “cedência de um útero”, como meios necessários desti- nados à consecução do fim que se expressa na entrega da criança [cfr., definindo nestes termos a maternidade de substituição ( surrogacy ), Donna Dickenson, “The commodification of women’s reproductive tissue and [1] Por facilidade de leitura autónoma deste voto de vencido, aqui transcrevo o artigo 8.º da LPMA na sua versão inicial que se manteve até 2016: Artigo 8.º – Maternidade de substituição 1 – São nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição. 2 – Entende-se por «maternidade de substituição» qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. 3 – A mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como mãe da criança que vier a nascer. [2] O preenchimento do conceito de beneficiários não resulta dos específicos trechos do artigo 8.º da LPMA aqui em causa (dos n. os 1 a 3) – aliás, não resulta de qualquer outro trecho desse artigo 8.º, e está bem longe de ser claro que resulte de outra disposição da referida Lei ou do Decreto Regulamentar n.º 6/2017, de 31 de julho (o que até estaria constitucionalmente vedado). Tal “preenchimento”, como se sublinha no Acórdão, foi realizado (foi “deliberado”) pelo Conselho Nacional da Procriação Medica- mente Assistida, através da Deliberação n.º 19-II/2017, de 20 de Outubro (“Interpretação do conceito de beneficiários para efeitos de recurso a gestação de substituição”), nos seguintes termos: “[…] para efeitos da possibilidade de celebração de contratos de gestação de substituição, apenas podem ser considerados como beneficiários os casais heterossexuais ou os casais formados por duas mulheres, respectivamente casados ou casadas ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges”.
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