TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
184 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL conhecimento da ascendência genética, em relação ao interessado (ou seja, a ‘pessoa nascida em consequência de processo de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição’), por força do caráter desnecessário da opção legislativa vigente (no que respeita à salvaguarda de outros direitos fundamentais ou valores constitucionalmente protegidos) que consagra a regra, ainda que não absoluta, do anonimato dos dadores no caso de procriação heteróloga, e bem assim o anonimato da gestante de substituição, como regra absoluta (por força do disposto no n.º 4 que apenas se refere à «iden- tidade do dador»). Ora, pese embora a abertura da fundamentação (cfr. n.º 80.) a uma solução legislativa que, para tutela desses outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, possa consagrar a regra inversa da regra ínsita no atual regime sindicado (n. os 1 e 4), assim afrontando a referida desnecessidade da opção legislativa vigente (anonimato como regra, ainda que não absoluta quanto aos dadores e como regra absoluta quanto à gestante de substituição) – que apenas operaria para o futuro –, a não limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade não permite, julga-se, mesmo que tal pudesse ser a escolha do legis- lador, acautelar – e, sublinhe-se, de todo –, ainda que sob certas condições e em termos limitados, os demais interesses envolvidos dos vários intervenientes, de elevada sensibilidade e igualmente com relevância cons- titucional, cujas decisões – de recorrer a técnicas de PMA com dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo na situação de gestação de substituição, foram tomadas num dado quadro legislativo e no contexto de um paradigma que, agora, se modifica significativamente. A não limitação de efeitos quanto à decisão constante da alínea e) pode, pois, precludir qualquer ‘válvula de proteção’ em sentido inverso no âmbito das situações de PMA heteróloga e relações jurídicas constituídas ao abrigo da legislação ora declarada inconstitucional com força obrigatória geral, tanto mais necessária – apesar da centralidade do valor que a maioria considerou ser prevalecente – quanto o alcance da referida mudança de paradigma quanto ao entendimento do direito das pessoas nascidas em consequência de processos de PMA heteróloga (incluindo, para a maioria, nas situações de gestação de substituição) à identidade pessoal previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, na sua dimensão de direito ao conhecimento da ascendência genética e, também (para a mesma maioria), da identidade da ‘sua’ gestante de substituição. – Maria José Rangel de Mesquita. DECLARAÇÃO DE VOTO 1. Votei vencido quanto à não consideração, no juízo de inconstitucionalidade material (direta) respei- tante à gestação de substituição, das normas constantes dos n. os 1, 2 e 3 do artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (Lei da Procriação Medicamente Assistida, que doravante identificarei como LPMA), na redação decorrente da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto. Considero que a introdução, por este último diploma (cfr. o respetivo artigo 1.º), da chamada gestação de substituição, enquanto situação (é como a LPMA a designa) que não dispensa o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida (sendo a elas diretamente associada pelo artigo 2.º, n.º 2 da LPMA), rom- pendo radicalmente com a opção assumida pelo legislador até 2016, projeta a precarização do conceito de dignidade humana, relativamente a alguns dos sujeitos envolvidos (desde logo a gestante e a criança). Este – o valor que nele se expressa –, enquanto proibição de instrumentalização da pessoa – sigo, em termos que adiante explicitarei, a chamada “fórmula do objeto” –, é colocado neste caso numa situação de perigo, numa situação de insegurança existencial, que acaba por induzir, num domínio em que a opção constitucional pos- tula expressamente a ideia de precaução na salvaguarda dos interesses em causa, uma violação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana […]” –, e especificamente referido à procriação assistida, numa linguagem carregada de intencionalidade, na alínea e) do n.º 2 do artigo 67.º do texto constitucional – “[i]ncumbe, designadamente, ao Estado para proteção da família […] [r]egu- lamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana”.
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