TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
180 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que a ‘entrega’ da criança (e correspondente ‘renúncia’ aos direitos e deveres próprios da maternidade) cons- titui uma ‘obrigação’ (final) essencial –, não é de excluir, incluindo por todas as razões acima mencionadas, divergências sobre a interpretação ou, sobretudo, sobre a execução do negócio jurídico (cfr. n. os 2, 4, 10 e 11 do artigo 8.º da LPMA). Ora, se tais divergências, por si só, constituem fonte de incerteza incompatível, pelo perigo objetivo que comportam quanto ao estatuto do nascituro e da (projetada) criança, não compatí- vel com o respeito pela dignidade da pessoa humana – que, nesta perspetiva, não admitirá ponderação com outros valores ou dependerá na sua aplicação da mediação de concretos direitos fundamentais –, por maioria de razão, a forma de resolução de litígios resultantes de tais divergências não poderia deixar de ser aquela que maiores garantias confere à proteção dos valores cimeiros envolvidos – a vida humana e a dignidade da pessoa humana – e à prevenção de um estatuto precário da parte mais carecida de proteção (a criança). Neste aspeto – pese embora o disposto na alínea m) do artigo 3.º do Decreto Regulamentar n.º 6/2017 – se manifesta pois, particularmente, a necessidade de proteção acrescida, a título cautelar, da dignidade da pessoa humana reportada à criança (ou, antes do parto, nascituro), até porque se está no perímetro dos direitos, liberdades e garantias – senão da criança, no que respeita ao direito ao desenvolvimento da personalidade e ao direito dos filhos a não serem separados dos pais (cfr. artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 5, da Constituição), pelo menos da gestante e dos beneficiários (como menciona o Acórdão em B.6.3, n.º 53). Note-se, aliás, e sem prejuízo do que atrás se disse quanto à preclusão, resultante do Acórdão, de celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição, o contrato-tipo adotado pela CNPMA consagra (apenas), em alternativa, dois modos de resolução dos conflitos em caso de divergência sobre a interpretação ou execução do mesmo, incluindo, pois, quanto à obrigação de ‘entrega’ e à ‘renúncia’ – convenção de mediação e, sendo caso disso, de arbitragem ou tão só convenção de arbitragem, esta nos termos da Lei da arbitragem voluntária (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro). Este aspeto de indeterminação, sobretudo porque se está perante o risco de litígios que não envolvem só interesses de ordem patrimonial (como sucede com o vínculo de filiação e, reflexamente, da nacionalidade) e, nessa medida, porventura excluídos do domínio da justiça arbitral, não deixa igualmente de contribuir para as incertezas, também de índole jurídica, para o bem em causa que, no entendimento que se segue, convocam o princípio da dignidade da pessoa humana enquanto limite que determinará, necessa- riamente, uma esfera (mais) alargada de proteção desse valor. Acresce, além das duas ordens de razões mencionadas, uma outra fonte de incerteza que pode ainda contribuir para a precarização do estatuto da (projetada) criança: a que se reporta à questão da previsão contratual de disposições a observar em caso de quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na gestação a nível fetal [cfr. artigo 8.º, n.º 10, em matéria de «ocorrência de malformações ou doenças fetais» e artigo 3.º, n.º 3, alínea g) do Decreto Regulamentar n.º 6/2017]. Com efeito, e sem prejuízo da norma vigente sobre «Interrupção da gravidez não punível» [cfr. artigo 142.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal], qualquer que seja a decisão tomada no quadro da norma legal (necessariamente – só – pela mulher grávida, face ao disposto no n.º 4 do mencionado artigo 142.º – no caso da gestação de substituição, a gestante de substituição), a mera hipótese de dessa decisão (quando no sentido da não interrupção da gravidez) poder emergir qualquer pretensão indemnizatória reportada à previsão da alínea c) do n.º 1, do artigo 142.º do Código Penal – como sugere a redação das cláusulas 9.º e 10.º do contrato-tipo de gestação de substituição adotado pela CNPMA – aproxima o estatuto da (projetada, depois nascida) criança de um ‘objeto’ cujas ‘características’ (negativamente valoradas) seriam ‘quantificáveis’ do ponto de vista patrimonial em termos que, mesmo à luz da “fórmula do objeto”, tal como referida na fundamentação do Acórdão (cfr. n.º 22) comportariam, em concreto, a sua degradação. Por último, as incertezas, na perspetiva da criança, que justificam o entendimento que se sustenta, podem ter igualmente a sua origem, de modo evidente, no regime de nulidade consagrado pelo legislador, especialmente na perspetiva da filiação jurídica, enquanto vertente do direito à identidade pessoal, e do correspondente estabelecimento de relações familiares. Assim, no que respeita à fundamentação do Acórdão quanto à questão versada em B.6, acolhe-se especialmente a contida nos pontos B.6.1, n.º 47 e B.6.2 (As
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