TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
172 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL direitos e interesses com dignidade constitucional, e mais ainda quando esses regimes se baseiam em juízos de prognose empírica complexos, o respeito pelo princípio democrático obriga a jurisdição constitucional a uma larga deferência em relação ao legislador. O controlo judicial, nesses casos, é um controlo essencial- mente «negativo» ou de «evidência», exceto quando estão em causa «classificações suspeitas» que denigrem a autoridade democrática da lei, justificando-se então um escrutínio judicial robustecido. Sucede que o princípio democrático – como todos os princípios estruturantes da ordem constitucional – também se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana. Numa comunidade política entre pessoas livres e iguais, com convicções diversas sobre a justiça e o bem comum, impõe-se o princípio de que a auto- ridade política, investida do poder de vincular a coletividade, deve ter uma base essencialmente democrática. As pessoas que integram o conjunto dos destinatários regulares das leis e dos atos da sua aplicação e execução – os cidadãos – devem concorrer, em condições de igualdade, para a formação da vontade política naque- las vertida. É essa exigência de igualdade política, de que a convicção de cada cidadão tenha exatamente o mesmo peso do que a de qualquer outro cidadão na formação de uma vontade comum, que impõe o sufrágio universal e a regra da maioria. Porém, a vontade comum, apurada segundo a regra da maioria, só é legítima, segundo o princípio de dignidade da pessoa humana em que se funda, se permanecer confinada ao domínio em que é indispensável a tomada de decisões comuns, porque a conduta dos destinatários não lhes diz exclusivamente respeito. No domínio em que as decisões respeitam apenas ao indivíduo, ou aos indivíduos que nelas consentem e partici- pam, o mesmo princípio matricial de respeito pela pessoa impõe a prevalência da liberdade individual sobre a vontade da maioria. Uma das tarefas cometidas a uma jurisdição constitucional é, assim, a de garantir o respeito do legislador democrático por essa esfera de autogoverno individual. Ora, esse é o domínio em que a gestação de substituição onerosa se situa, dada a ausência de qualquer evidência empírica ou racional de que as decisões dos interessados se repercutem de forma significativa na esfera de terceiros em relação ao negócio. Não consigo discernir qualquer argumento de «razão pública» para restringir as liberdades fundamentais que aqui estão em causa, nem sequer para que o legislador opte por um reconhecimento legal por etapas, guiado por um imperativo de prudência. É evidente que tudo isto se baseia na interpretação liberal ou deontológica do princípio da dignidade da pessoa humana, e numa série de valorações e deduções controversas. Mas isso é inevitável. A ordem cons- titucional em que se situam o legislador democrático e o juiz constitucional não se interpreta a si própria, nem se revela no espírito dos seus protagonistas. Tem de ser interpretada por eles, com os riscos e as dúvidas inerentes; e o intérprete final, mais ou menos deferente em relação ao legislador, pressuposta nessa deferência uma certa interpretação do princípio democrático, é necessariamente o Tribunal Constitucional. Os únicos contrapesos legítimos dessa autoridade de instância última, num Estado de Direito, são os deveres de integri- dade e de fundamentação das decisões, e a subsequente vigilância crítica praticada no espaço público. B) A Revogação do Consentimento da Gestante 7. O Tribunal entende ser inconstitucional a impossibilidade de a gestante revogar o consentimento após o início dos processos terapêuticos de procriação medicamente assistida – solução consagrada no n.º 8 do artigo 8.º da LPMA, através da remissão para o artigo 14.º Segundo a decisão, esta limitação do poder de revogação implica que a gestante não se pode exonerar das principais obrigações a que se vincula perante os beneficiários – a de suportar a gestação até ao fim e a de lhes entregar a criança após o parto –, nos casos em que se venha a «arrepender» da decisão inicial de dispor da sua integridade física, da sua liberdade geral de ação e do seu direito a constituir família. No caso de o arrependimento incidir sobre o compromisso de gerar a criança, supõe o Tribunal que a impossibilidade de revogação do consentimento condiciona o recurso à interrupção voluntária da gravidez, nos termos legalmente previstos, ficando a gestante na contingência de ter de suportar uma gravidez e um
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