TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
171 acórdão n.º 225/18 liberdade geral de ação. Será que também é assim nos casos em que o negócio seja oneroso? A decisão do Tri- bunal atribui à imposição de gratuitidade, para além de uma função de tutela direta da dignidade, justificada em termos essencialmente perfeccionistas, um papel de «garantia de que a atuação da gestante é verdadeira- mente livre e, como tal, uma expressão da sua autonomia». Mas parece-me insólita a ideia, subjacente a este juízo, de que a gestante altruísta está geralmente sujeita a menor «pressão» do que a gestante motivada pelo interesse pecuniário. O domínio em que é previsível que venham a ocorrer a esmagadora maioria dos casos de gestação de substituição gratuita – a família – não é um espaço de dependência e de compulsão do indi- víduo menos acentuado do que o domínio das relações estritamente patrimoniais, ainda que as suas lógicas de organização e de funcionamento sejam distintas; sendo ainda certo que a vida familiar tem um lastro de autonomia face aos poderes públicos – historicamente, por respeito pela autoridade patriarcal, mas nos dias que correm, em larga medida, por valiosas razões de reserva de intimidade – ostensivamente mais acentuado. Por outro lado, o facto de as motivações da gestante, no caso da gestação onerosa, não serem geralmente a sua «elevação moral», a seus olhos e dos beneficiários, mas a contraprestação devida pela disposição do seu corpo e a limitação da sua liberdade, não pode fundamentar qualquer restrição da sua liberdade no quadro de uma interpretação liberal do princípio da dignidade da pessoa humana. De resto, os supostos argumentos a favor a proibição da onerosidade parecem-me tão abstratos e excessivos que obrigariam à condenação do trabalho assalariado («a exploração do homem pelo homem»), quando não de todo e qualquer contrato comutativo. Nada disto serve para negar que, num domínio delicado como este, se justificam medidas cautelares que assegurem a liberdade efetiva da gestante. No atual regime, essa função é desempenhada, ao lado dos poderes de controlo e acompanhamento do CNPMA, pelo n.º 6 do artigo 8.º da LPMA, que proíbe a celebração de negócios quando entre as partes exista uma relação de subordinação económica – norma cuja conformi- dade constitucional não me suscita dúvidas; e é natural que, se viessem a admitir-se negócios onerosos, e se em torno dessa permissão se desenvolvesse um mercado, a lei fosse chamada a intensificar a regulação neste domínio. Quanto à posição da criança, acompanho todos os argumentos da decisão. A criança não é mais «coisifi- cada» ou «instrumentalizada» na gestação de substituição do que o é na procriação através de relações sexuais, sempre que esta seja deliberada; e se há uma inevitável instrumentalização da procriação em função do desejo dos pais de terem uma criança, com ela se não confunde a instrumentalização da própria pessoa que virá a ser gerada, cuja dignidade e direitos são assegurados nos mesmos termos em que o são os de qualquer pessoa humana. Na verdade, a invocação da dignidade e do interesse da criança contra a gestação de substituição é, como a decisão também assinala, perfeitamente absurda. Num regime como o nosso, de acesso restrito a situações de incapacidade natural ou falta de condições de saúde para suportar uma gravidez até ao fim, a pessoa nascida através de gestação de substituição não poderia em caso algum existir se tal modo de procria- ção fosse proibido. Com efeito, se a pessoa viesse a afirmar um dia que a sua dignidade foi ofendida ou que o seu interesse como criança foi lesado pelo facto de ter sido gerada da única forma em que a sua existência era possível, incorreria de imediato numa contradição performativa. 6. Pelas razões expostas, creio que o reconhecimento legal da gestação de substituição não só é constitu- cionalmente admissível, como é uma imposição constitucional ao legislador decorrente dos direitos a consti- tuir família e ao livre desenvolvimento da personalidade. Creio ainda que a proibição de negócios onerosos, um dos elementos essenciais do «modelo português» consagrado no artigo 8.º da LPMA, é inconstitucional, por violar esses mesmos direitos. Não posso, porém, deixar de dizer uma palavra de defesa da minha posição contra uma objeção tão óbvia quanto pertinente: a de que a decisão de proibir a gestação de substituição onerosa se situa no âmbito da liberdade de conformação política do legislador. A liberdade de conformação política do legislador funda-se no princípio democrático da sua autoridade. Quando um regime legal resulta da ponderação de múltiplas razões em diversos sentidos, em que avultam
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