TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

170 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL praticar a justiça e a caridade ou a admirar a beleza de uma paisagem e o génio de uma obra de arte. Sendo certo que apenas as pessoas são capazes destas coisas, o exercício dessa capacidade é sempre e necessariamente um ato de liberdade. A restrição da liberdade, nas suas diversas formas, pode assegurar a conformidade da conduta com os valores relevantes, mas não pode – pela sua natureza de causa ou incentivo externo ao agente – assegurar a adesão a esses valores. É certo que a liberdade não é uma garantia de que a pessoa se respeita na condução da sua vida, que não se degrada ou coisifica a si própria; mas é uma condição necessária desse respeito. Na verdade, a restrição da liberdade individual com fundamento na dignidade pessoal do agente é uma contradição nos próprios termos, porque priva o sujeito da capacidade de se autodeterminar em que se baseia o reconhecimento da sua eminente dignidade. A ordem jurídica estadual é impotente para garantir diretamente a dignidade pessoal, pelo que a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio jurídico, é um princípio de liberdade individual. Em segundo lugar, o argumento do pluralismo. Respeitar a pessoa humana na sua capacidade de auto- determinação é respeitar, não apenas a sua liberdade de ação, mas as normas e os valores pessoais que orien- tam a sua conduta – respeitar a sua liberdade de convicção. Confrontada com o facto ineliminável do plura- lismo razoável de convicções religiosas, filosóficas e morais, uma ordem constitucional baseada no princípio da dignidade da pessoa humana não pode deixar de vincular a autoridade pública que reclama a obediência espontânea das pessoas e o direito de se lhes impor pela força a deliberar e atuar segundo razões que todos devem, sem prejuízo das suas múltiplas e concorrentes lealdades mundividenciais, aceitar como boas. Ora, a generalidade dos ideais de excelência pessoal ou das convicções sobre a natureza humana que informam a interpretação perfeccionista da dignidade não integram esse património comum de «razão pública», pelo que não podem ser admitidas como justificações válidas para as leis, nomeadamente aquelas leis que restringem a liberdade geral de ação com fundamento no dever de proteção da dignidade do próprio agente. 5. A gestação de substituição é uma relação com três polos: beneficiários, gestante e criança. No que diz respeito aos beneficiários, creio ser difícil argumentar que não se trata de um exercício da liberdade de procriar e, por essa via, da liberdade de constituir família, sobretudo tendo em conta que a lei portuguesa admite a figura apenas nos casos em que a beneficiária não tem condições naturais para gerar uma criança. É discutível se se pode falar ainda de procriação em relação ao beneficiário que não tenha con- tribuído com gâmetas, nos casos em que isso suceda; mas atentos os factos de, por um lado, a lei exigir que sejam usadas gâmetas de pelo menos um dos beneficiários e, por outro, que é pacífico o entendimento de que o direito a constituir família compreende a filiação não-biológica, a dúvida não tem a menor relevância prática. Por outro lado, não posso acompanhar a afirmação de que é impensável um «direito fundamental à procriação por via de gestação de substituição […], devido à essencialidade da intervenção voluntária de uma mulher disposta a suportar a gravidez por conta dos beneficiários e a entregar a criança após o parto, [que] o Estado jamais estaria em condições de satisfazer.» O direito em causa não é, evidentemente, um direito a uma prestação estadual, muito menos um direito correlativo a uma obrigação estadual de resultado. Trata-se de uma liberdade fundamental, de que decorre, prima facie , a inconstitucionalidade da imposição de um dever legal de não tentar procriar através do recurso à gestação de substituição. É claro que a liberdade de procriar não encerra qualquer garantia de satisfação do desejo de ter uma criança, tal como a liberdade de criação artística não assegura a satisfação do desejo de publicar um romance ou a liberdade de expressão não assegura a satisfação do desejo de persuadir a audiência de um sermão. O mais que se pode dizer é que as soluções técnicas (PMA) e sociais (gestação de substituição) ampliaram o universo das possibilidades fácticas de que esse desejo venha a ser realizado, e só razões constitucionais ponderosas podem justificar a restrição do uso desses meios, sobretudo quando a beneficiária não tenha capacidade natural ou condições de saúde para engravidar ou suportar uma gravidez até ao fim. Do ponto de vista da gestante, a celebração e execução de negócios de gestação de substituição cor- responde ao exercício do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em especial na vertente de

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=