TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

169 acórdão n.º 225/18 comunidade política baseada na dignidade da pessoa humana tem, não apenas o dever de se abster de instru- mentalizar as pessoas e de protegê-las da instrumentalização por terceiros, mas também o dever de as proteger contra a instrumentalização de si próprias. Para responder a tal questão, impunha-se tomar uma posição firme e coerente sobre a interpretação ou conceção substancial de um conceito constitucional essencialmente contestado, precisamente o de digni- dade da pessoa humana. Não basta afirmar que nenhuma pessoa pode ser tratada como objeto, que a pessoa humana possui valor intrínseco, que tem a capacidade de se autodeterminar ou que «não se pode excluir a relevância do consentimento livre e esclarecido […] relativamente a atuações e situações que, sendo impostas e não consentidas, atentariam contra a dignidade do sujeito». Estas asserções são importantes e verdadei- ras, mas situam-se num plano etéreo, abstraído da controvérsia sobre a relação entre dignidade pessoal e liberdade individual com a qual o Tribunal Constitucional foi, pela natureza própria da questão que lhe foi colocada, diretamente confrontado. A assunção explícita dessa tarefa, sem dúvida difícil e arriscada, é o preço justo de uma jurisprudência constitucional criteriosa e transparente, sujeita ao escrutínio de uma «sociedade aberta de intérpretes». Abriam-se aqui dois caminhos principais e divergentes. Uma interpretação possível do conceito constitucional de dignidade da pessoa humana é perfeccio- nista ou teleológica. O perfeccionismo entende que a dignidade da pessoa está no valor dos seus projetos ou opções existenciais, no facto de estes desenvolverem as suas capacidades e promoverem a excelência, nas mais variadas formas, na sua vida. Os direitos fundamentais – e, em especial, os direitos de liberdade – têm por fundamento e limite um ideal mais ou menos aberto e plural de perfeição pessoal, pelo que o princípio da dignidade da pessoa humana autoriza (quando não obriga) o poder público, pelo menos prima facie , a restringir a liberdade individual sempre que o seu exercício ponha em causa a dignidade do agente. Embora não o assuma explicitamente, julgo que esta conceção perfeccionista da dignidade da pessoa humana perpassa na decisão. Respondendo à objeção de que, na gestação de substituição, a dignidade da ges- tante se encontra «capturada pela liberdade», o Tribunal, salientando a gratuitidade do negócio, afirma que «[a] gestante de substituição atua um projeto de vida próprio e exprime no mesmo a sua personalidade. […] A sua gravidez e o parto subsequente são tanto instrumento ou meio, como condição necessária e suficiente de um ato de doação ou entrega, que, a seus olhos e segundo os seus próprios padrões éticos e morais, a eleva. E eleva-a igualmente perante aqueles que são por ela ajudados. Ora, a elevação da gestante de substituição, perante si mesma e os beneficiários e, porventura, perante o círculo dos seus mais próximos, é o oposto da sua degradação.» Apesar da abertura que revela − «a seus olhos e segundo os seus próprios padrões éticos e morais» – esta justificação parte da ideia de que o valor ou excelência ética da escolha da gestante, que sacri- fica bens pessoais para corresponder ao desejo parental dos beneficiários, sem exigir nada em troca, é razão decisiva para supor que a dignidade da sua pessoa não é violada. Não é que eu discorde que seja tipicamente assim nos casos de gestação de substituição gratuita. Sucede é que esta razão – o valor ético ou bem intrínseco da opção tomada pela gestante – é irrelevante para decidir se deve ou não ser respeitada a sua liberdade. E é irrelevante porque – parece-me – o Tribunal deveria ter seguido o caminho de uma conceção liberal ou deontológica da dignidade da pessoa humana, uma conce- ção nos termos da qual a dignidade, enquanto princípio jurídico, não pode ser invocada contra a liberdade do próprio, antes reclama que essa liberdade seja respeitada seja qual for o conteúdo ou a motivação do seu exercício. Dois argumentos apoiam – a meu ver, decisivamente − esta conceção. Em primeiro lugar, o argumento da interioridade. Se o valor intrínseco da pessoa humana está, e isso parece relativamente consensual (no contexto do debate constitucional), na sua capacidade singular de auto- determinação − de ser «legislador de si próprio» ou de se motivar por valores, seja qual for a origem e o sen- tido últimos das normas e dos valores −, a dignidade pessoal pressupõe a liberdade de ação. Não é possível forçar uma pessoa a adorar o deus verdadeiro, a compreender os princípios da lógica e as leis da física, a

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