TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

168 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL física ou a liberdade de outra pessoa» (artigo 200.º, n.º 1, do Código Penal), a lei trata inequivocamente o destinatário, sem o seu consentimento, como um meio ao serviço dos interesses de outrem (interesses que lhe são, em princípio, «totalmente estranhos»). Ora, se proibição da instrumentalização for aplicada a este caso, como norma absoluta e autónoma, somos levados a concluir – o que é absurdo – que ocorre aqui uma violação, por definição intolerável, da dignidade da pessoa humana. Para evitar aporias deste tipo – e podem dar-se vários exemplos −, a proibição da instrumentalização expressa através da «fórmula do objeto» tem de ser entendida, não como norma diretamente aplicável, mas como uma restrição deontológica no conteúdo do princípio da proporcionalidade. Note-se que a estrutura básica da proporcionalidade em sentido estrito é de tipo consequencialista: os bens são, por assim dizer, colo- cados nos pratos de uma balança, que determina o peso relativo do sacrifício e da vantagem; se o conflito for entre vidas humanas, por exemplo, o juízo de ponderação, entendido nestes termos, resume-se a uma ope- ração contabilística – v. g. , sacrificar a vida de uma pessoa saudável para colher os órgãos vitais de que duas ou mais pessoas carecem para sobreviver é uma ação permitida, simplesmente porque uma vida humana, por valiosa que seja, pesa necessariamente menos do que duas ou mais vidas humanas. Este resultado é repugnante − manifestamente incompatível com a dignidade da pessoa cuja vida é sacrificada – e revela a necessidade de introduzir restrições à simples ponderação de consequências. É precisamente esse o principal alcance jurídico da proibição de instrumentalização: o desvalor da res- trição a um direito fundamental não se esgota na gravidade da lesão do bem correspondente – a variável consequencialista determinada na ponderação dos efeitos −, mas compreende ainda o conteúdo da medida restritiva – saber se o sacrifício do bem pessoal é essencial ou circunstancial. É a importância desta variável deontológica – o desvalor intrínseco da instrumentalização de bens pessoais, independente do desvalor das consequências − que explica a intuição comum de que há uma diferença moralmente relevante, seja qual for o juízo final a que se chegue, entre desviar o curso de um comboio para evitar a morte de cinco pessoas amarradas à linha inicial, sacrificando-se a vida de uma pessoa amarrada à linha para a qual o comboio foi desviado, e lançar uma pessoa sobre a linha para provocar o abrandamento e eventual paragem do mesmo comboio. Reduzida aos termos mais simples, a diferença é que no primeiro caso uma vida é sacrificada como consequência do salvamento das restantes vidas, ao passo que no segundo caso a vida sacrificada é o instru- mento para salvar as restantes. Nas situações em que o titular do direito restringido é tratado como um meio, a intensidade da restrição excede largamente a gravidade da lesão do bem, pelo que apenas pode ser tolerada quando esta seja relativa- mente negligenciável. É o caso da incriminação da omissão de auxílio, em que o sacrifício da liberdade geral de ação é tão ligeiro, quando sopesado com os interesses colocados pelo legislador no outro prato da balança, que nem a instrumentalização do destinatário do dever justifica a censura da solução legal. A dignidade do visado não é violada porque a restrição do seu direito fundamental não excede os limites da proporcionali- dade, uma vez ponderadas todas as considerações deontológicas e consequencialistas relevantes. Apesar da dignidade da pessoa humana ser um valor absoluto, a proibição da instrumentalização é apenas uma das suas refrações normativas – ao lado, por exemplo, dos direitos fundamentais ou da ponderação de bens −, que tem de ser devidamente articulada com as demais. Em suma, o que o respeito absoluto pela dignidade da pessoa humana exige num determinado caso não é um prius suscetível de ser apreendido numa qualquer fórmula operativa, mas o resultado da ponderação das razões que relevam – todas as que relevam, mas também apenas as que relevam – desse princípio matricial. 4. Em todo o caso, a proibição da instrumentalização, expressa através da «fórmula do objeto», não dá qualquer indicação útil para resolver o problema central colocado pelo confronto da gestação de substituição com o princípio da dignidade da pessoa humana: saber se a dignidade de uma pessoa plenamente capaz pode justificar a restrição da sua liberdade. Trata-se de saber se a proibição constitucional da instrumentalização da pessoa se dirige também contra o próprio, em termos de se poder dizer que a autoridade pública de uma

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