TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
167 acórdão n.º 225/18 constitucionais legítimas para restringir esses direitos fundamentais através da proibição da gestação de subs- tituição, a Constituição impõe ao legislador o reconhecimento da figura. Em terceiro lugar, recuso a ideia de que a gratuitidade seja uma garantia de liberdade ou de dignidade da gestante; pelo contrário, penso que a sua imposição restringe ilegitimamente os direitos fundamentais que se exercem através da celebração e execução de negócios onerosos de gestação de substituição. Por tudo isto, entendo que um dos elementos essenciais do «modelo português» − a imposição de gratuitidade – é constitucionalmente censurável. Claro está que a censura, segundo este raciocínio, não é dirigida ao reconhecimento legal dos negócios gratuitos, mas ao facto de a lei proibir (e até mesmo incriminar) a celebração de negócios onerosos. A lei fica – assim me parece − aquém das exigências constitucionais. 3. A minha divergência com a decisão começa pela forma como penso que nela é caracterizado o princí- pio da dignidade da pessoa humana: um princípio constitucional com natureza normativa, objetiva, absoluta e autónoma. Penso que os três primeiros predicados – normatividade, objetividade e incondicionalidade – são corretos; mas não julgo que o seja o último – a autonomia −, entendida esta, como creio ser o sentido pretendido, como a propriedade segundo o qual o princípio da dignidade da pessoa humana pode operar como parâmetro imediato e único de um juízo de inconstitucionalidade. Como se afirma na decisão, o princípio da dignidade da pessoa humana é uma norma, com efeitos jurídicos próprios, e não uma proclamação preambular com valor meramente simbólico ou função retórica (neste sentido, já o Acórdão n.º 105/90); daí a sua natureza normativa. Por outro lado, é um princípio objetivo: o de que cada uma das pessoas humanas tem valor intrínseco e não instrumental, sendo a sua existência um fim em si mesmo e não um meio ao serviço de fins alheios; a dignidade surge, «não como um específico direito fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas subjetivas» (Acórdão n.º 101/09), mas como fundamento dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais estruturantes. Trata-se, ainda, de um princípio absoluto: a dignidade da pessoa − de cada um dos indivíduos que integra a classe das pessoas humanas – não é um valor que possa ser pesado, ao lado de outros valores, na balança das ponderações; é o pressuposto, fundamento, métrica e limite axiológico de todas as ponderações. Daí ser uma norma inviolável, no sentido em que a sua violação é intolerável. Em tudo isto eu acompanho a decisão. Onde já não a posso acompanhar é no entendimento de que o princípio da dignidade da pessoa humana é uma norma autónoma, diretamente aplicável como parâmetro único de validade da lei e dos demais atos do poder público. Nem me parece que tal entendimento encontre respaldo na jurisprudência constitucional, nomeadamente na afirmação, constante do Acórdão n.º 101/09, de que o princípio da dignidade da pessoa humana pode «ser utilizado na concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados ou na revelação de direitos fundamen- tais não escritos». Pelo contrário, estas palavras sugerem que o princípio da dignidade da pessoa humana é aplicável em conjunto ou em articulação com outras normas constitucionais com maior densidade de con- teúdo, em especial as que consagrem direitos fundamentais, seja na concretização de direitos expressamente consagrados, seja na fundamentação de direitos não escritos. Na verdade, a aplicação do princípio, como o faz o Acórdão, como norma absoluta e autónoma, gera resultados absurdos em casos importantes. Há um amplo consenso no sentido de que uma das refrações do valor intrínseco da pessoa humana é a proibição da instrumentalização, expressa na «fórmula do objeto» de Günter Dürig, à qual a decisão atribui, na sequência de jurisprudência constitucional antiga e sucessiva- mente reiterada, um «importante valor heurístico». Nos seus termos, «a dignidade é atingida quando o ser humano em concreto é degradado a objeto, a um simples meio, a uma realidade substituível» − ou seja, nas palavras da decisão, «como simples meio para alcançar fins que lhe sejam totalmente estranhos». Porém, nem toda a instrumentalização da pessoa pelos poderes públicos viola a sua dignidade. Para dar um exemplo tri- vial, ao incriminar a omissão de auxílio, «em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desas- tre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=