TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
165 acórdão n.º 225/18 potenciadora da «reivindicação do outro» numa disputa entre adultos sobre quem é o titular do «direito à criança» originada num processo de procriação que funcionaliza o recém-nascido no seu modo de vinda ao mundo. Subestimando-se a dimensão relacional da dignidade humana, precisamente no campo que envolve os seres humanos mais frágeis, permite-se que a criança seja concebida para ser entregue. O altruísmo reco- nhecível no sacrifício da gestação para outrem, não dispensa, afinal, também a doação do outro. O mais vulnerável de todos os sujeitos é sempre a criança, em especial antes de nascer, período em que o seu reconhecimento como ser humano e proteção depende inteiramente da vontade de adultos. Por essa razão o princípio do superior interesse da criança não pode ser separado do respeito pela dig- nidade humana o que implica que a criança nunca deverá ser tratada como um meio para satisfazer desejos de outras pessoas, especialmente se a solução encontrada, nem mesmo do ponto de vista científico pode ser considerada isenta de dúvidas sobre os malefícios que pode causar no seu bem-estar e desenvolvimento. Por estas razões votei a inconstitucionalidade de todo o artigo 8.º da LPMA o que acarreta a inconstitu- cionalidade consequente de todas as normas respeitantes à gestação de substituição constantes daquela Lei. 10. Finalmente, não fiquei convencida de que o âmbito de apreciação que foi feita da norma do artigo 20.º, n.º 3, da LPMA corresponda inteiramente ao pedido formulado pelos requerentes. O acórdão considera que os requerentes limitam o pedido de apreciação à dimensão da norma atinente à dispensa de averiguação oficiosa da paternidade. Consequentemente, e apesar de ter «em consideração a plena vigência do artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma», preceito que – conforme também assinalou – «pode suscitar questões de inconstitucionalidade relacionadas com a possibilidade de criação de famílias monopa- rentais» (ponto 81), o Tribunal não entrou na respetiva apreciação, por a norma do artigo 6.º não constar do pedido. Creio, no entanto, que, ao pedirem nas considerações finais, a fiscalização da «nova redação do artigo 20.º, n.º 3, da LPMA, na parte em que dispensa a instauração oficiosa da paternidade quando apenas houve lugar ao consentimento da pessoa sujeita a PMA» (citado no ponto 81, itálico nosso), os requerentes não introduziram nenhuma restrição relevante à apreciação da norma resultante daquele preceito. Na verdade, o artigo 20.º, n.º 3, da LPMA, estabelece a determinação da maternidade da mulher que recorre individual- mente a uma técnica de PMA, dispensando os serviços públicos de averiguar oficiosamente a paternidade incógnita. É este o seu conteúdo normativo útil. E é precisamente esse o conteúdo normativo que os reque- rentes questionam: a determinação da maternidade com dispensa de averiguação da paternidade biológica que, assim, permanece incógnita, o que expressa uma «mudança de paradigma da utilização das técnicas de PMA» com « o centrar da PMA na mulher e num único progenitor , que deixa a descoberto a necessidade de maior atenção aos direitos da criança que vai nascer» (pp. 6 e 7 do requerimento – itálico nosso). Penso, assim, que o acórdão devia ter analisado as questões de inconstitucionalidade relacionadas com a possibilidade de criação de famílias monoparentais que assinalou nos pontos 36 e 81. Neste âmbito, cumpre ainda salientar que no Acórdão n.º 101/09, o Tribunal Constitucional pronun- ciou-se num contexto normativo completamente diferente do atual, em que não havia ainda abertura da PMA heteróloga a casais de mulheres ou a uma mulher só, independentemente de razões médicas. Trava-se, então, apenas de dar uma resposta médica para um problema de infertilidade, portanto uma aplicação estrita de técnicas de procriação limitadas à função terapêutica da medicina. Hoje as técnicas de PMA (sem parceiro masculino) podem ser utilizadas também fora do contexto do tratamento médico de infertilidade de origem patológica, tendo passado a incluir um outro fim, já social, o que implica a institucionalização e a promoção pública da monoparentalidade e da bimaternidade. O quadro normativo desta realidade e as suas implicações não foram tidos em conta (porque tal realidade não existia) no Acórdão n.º 101/09, o que significa que a fundamentação deste aresto não pode ser transposta, sem mais, para o presente regime. Existiu, portanto, um défice de ponderação desta questão pelo Tribunal Constitucional no presente acórdão. – Maria de Fátima Mata-Mouros.
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