TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

164 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL também a dimensão da dignidade humana enquanto limite constitucionalmente imposto às técnicas de PMA [artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da Constituição], como sejam o direito fundamental previsto no n.º 5 do artigo 36.º da CRP, segundo a qual «os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos» e o direito fundamental consagrado no n.º 6 do artigo 36.º da Constituição, segundo a qual «os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial». Na verdade, ao desfazer a ligação entre a gestação, o parto e a «mãe», a gestação de substituição traz em si implicada a fragmentação do sentido de filiação e maternidade. Desde logo porque uma dispersão dos vários elementos integrantes do todo altera a natureza do conceito. A utilização da mulher como «gestante» transforma a «genitora» (do latim, mater ) num mero serviço despido de relação pessoal, desconstruindo a ideia simbólica que é reconhecida à «maternidade» enquanto matriz civilizacional, com consequências inevitáveis ao nível da representação das relações mãe/filho e vice-versa. A dissociação e fragmentação da maternidade implicada na gestação de substituição coloca problemas de compatibilidade com o seu valor social eminente que, nos termos da Constituição, deve merecer a «proteção da sociedade e do Estado» (artigo 67.º, n.º 2, da Constituição). Fazer depender os deveres de associação que decorrem dos laços familiares de uma escolha (vertida num contrato) leva à quebra das obrigações de solidariedade entre os seus membros o que compromete a tutela constitucional da «maternidade» e da «paternidade» enquanto fatores de efetivação do direito ao desen- volvimento integral da personalidade e de garantia do próprio valor da família como «elemento natural e fundamental da sociedade» (artigo 16.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Uma tal fragmentação ao nível da representação familiar e comunitária reflete-se também nas futuras gerações. Não ignoramos os desenvolvimentos que o progresso biotecnológico pode introduzir em conceitos como «mãe» ou «pai», antes considerados claros e inquestionáveis, mas nem o mais habilidoso construti- vismo concetual poderá transformar o «direito da criança aos seus pais» num «direito do adulto à criança». 8. Diferentemente do acórdão, entendo, assim, que o problema de constitucionalidade que a gestação de substituição consagrada no artigo 8.º da LPMA coloca, por desrespeitar o limite da salvaguarda da pessoa humana imposto no artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da Constituição, não surge apenas pela limitação à revogabi- lidade do consentimento, resultante dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n. os 4 e 5, da LPMA, antes e, desde logo, na previsão da possibilidade de uma mulher se dispor a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade. Se dúvidas houvesse no que respeita à instrumentalização da gestante, o próprio acórdão as resolve ao confirmar, afinal, ainda que apenas em sede de análise do regime, que «Por força das características próprias da gravidez, enquanto fenómeno biológico, psicológico e potencialmente afetivo com caráter dinâmico e imprevisível quanto a diversas vicissitudes, não se pode ter como certo que a vontade inicialmente mani- festada pela gestante seja totalmente esclarecida (…)» (cfr. ponto 46). Como conjugar um tal dado com o pressuposto antes assumido, de que a legitimação da intervenção da gestante na gestação de substituição se legitima na afirmação livre e responsável da sua personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) que, em última análise, se funda na sua dignidade (cfr. ponto 28)? Acresce que, ao colocar o acento tónico na necessidade de acautelar uma cláusula de consciência, pre- vendo o direito ao arrependimento da gestante, o acórdão despreza os outros interesses em presença e que também merecem consideração. Desde logo os beneficiários, que só aceitaram contratar com base na renún- cia da gestante à maternidade. Mas acima de tudo despreza o superior interesse e, com ele, a dignidade da criança que, assim, é gerada na indefinição de quem serão, afinal, os seus pais. 9. Na verdade, a consagração da revogabilidade do consentimento da gestante durante todo o processo de gestação de substituição, neste modelo que contém na sua definição a «entrega da criança» nos termos previstos no n.º 1 do artigo 8.º, não eliminaria, antes tornaria ainda mais evidente, o principal obstáculo constitucional à sua consagração. Trata-se da gravidez vista como um serviço com obrigação de resultado

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