TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

163 acórdão n.º 225/18 6. Apesar de ser um ato do foro íntimo, a procriação humana projeta os seus efeitos para além do domí- nio privado. Materializa identidades, estabelece laços e relaciona gerações, identificando responsáveis pelos cuidados entre pais e filhos, avós e netos e, em geral, entre parentes e afins. Como processo de procriação humana que é, a gestação de substituição não esgota os seus efeitos na reprodução biológica: dá origem a vínculos de parentesco, que pressupondo um reconhecimento, não têm em si um mero significado biológico, antes conferem significado e valia antropológica, que constituem uma base da humanização. Sendo assim, a análise da conformidade da gestação de substituição com o princípio da dignidade da pessoa humana não pode deixar de convocar, a par dos direitos pessoais consagrados no artigo 26.º da Constituição, também outros direitos e valores fundamentais constitucionalmente consagrados em matéria de família e filiação, bem como as obrigações de proteção da infância impostas ao Estado nos n. os 1 e 2 do artigo 69.º da Constituição. OTribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o conteúdo essencial do direito de constituir família abrange, além do direito dos progenitores a estabelecer vínculos de filiação, também o direito do filho ao conhecimento da paternidade e da maternidade bem como ao estabelecimento da correspondente filiação, não os fazendo decorrer apenas do direito à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição). Como ainda recentemente salientou (cfr. Acórdão n.º 346/15) o direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito do filho ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, cabe no âmbito e proteção quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) quer do direito fundamental de constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da CRP). O direito ao conhecimento das origens genéticas não pode, por conseguinte, deixar de incluir uma dimensão de proteção que limite o legislador na consagração de soluções que permitam aos progenitores dis- por livremente do respetivo estatuto jurídico, escolhendo assumir ou não a condição legal de pai ou mãe. De modo idêntico, também do direito à historicidade pessoal resulta um princípio de limitação da livre escolha entre assunção ou rejeição do papel que o direito reserva como consequência do facto de se gerar e dar à luz uma criança. Estes direitos são reconhecidos também internacionalmente na Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990, ao prever, no artigo 7.º, que toda a criança tem o direito à identidade, incluindo «o direito de conhecer e de ser cuidada pelos seus próprios pais». 7. Deixando de parte a maternidade de substituição a título oneroso – que o legislador afastou e é, de resto, proibida pelo artigo 21.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina –, as soluções legislativas adotadas nos ordenamentos jurídicos que permitem e regulam a prática da gestação de substi- tuição diferenciam-se em função do modo de estabelecimento dos vínculos de maternidade e paternidade que lhes estão associados, entre modelos de estabelecimento legal e modelos de estabelecimento judicial da filiação. O modelo de gestação de substituição definido nos n. os 1 e 7 do artigo 8.º caracteriza-se pela entrega da criança pela gestante aos beneficiários e o reconhecimento a estes últimos da maternidade (e também da paternidade) ab initio , diferenciando-se de outros modelos, como por exemplo o que vigora no Reino Unido (assente numa transferência judicial da maternidade da criança através de uma « parental order »). Ao definir, no n.º 1 do artigo 8.º da LPMA, «gestação de substituição» como a situação em que a mulher se dispõe a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, «renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade», o legislador reconhece clara e expressamente a incidência na gestante de poderes e deveres próprios da maternidade. É, de resto, nessa qualidade que a mulher intervém no contrato e presta o consentimento necessário. É também o que resultaria da consagração da possibilidade da gestante renunciar ao longo de todo o processo. Todavia, a norma em causa habilita-a a renunciar àqueles deveres, por simples ato de vontade. Por seu turno, o n.º 7 do artigo 8.º da LPMA estabelece que a criança que nascer por gestação de subs- tituição é tida como filha dos respetivos beneficiários, desprezando direitos fundamentais que enformam

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