TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

162 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Dignidade e autonomia da pessoa, sendo embora indissociáveis, não se confundem. Não basta assegurar a liberdade para se garantir o respeito pela dignidade humana. A liberdade não pode ser compreendida como um exercício ilimitado e arbitrário da vontade, implicando sempre a responsabilidade. Cada pessoa, inserida como está numa sociedade, tem de ser compreendida na sua relação com as demais. A dignidade de cada pessoa pressupõe a dignidade do outro. É, portanto, inevitável e legítimo limitar a sua autonomia nos casos em que o seu exercício tem implicações relativamente aos outros. Sem a devida valorização da condição de vulnerabilidade do ser que irá nascer, o respetivo estatuto ten- derá a ser reduzido ao de objeto dos direitos dos adultos em que o filho deixa de ser reconhecido como um bem único e indisponível, dotado de objetiva dignidade ontológica. Numa lógica consequencialista, dá-se por certo que a criança nunca terá por que se queixar, já que não fora a técnica adotada em execução do acordo entre adultos, e nem existiria (cfr. ponto 32). A análise moldada sobre o modelo do indivíduo adulto e livre deixa de fora as crianças, precisamente quem mais carece de proteção no âmbito da aplicação da procriação através de gestação de substituição. Não posso acompanhar uma tal análise, desde logo por nela se ignorar que a identidade pessoal é ine- rente a cada ser humano singular, durante toda a sua existência biológica, como sua característica estrutural. 5. A gestação de substituição quebra intencionalmente a ligação entre mãe e filho que começa no útero, ainda antes do nascimento, moldando o significado do ato de gerar e o valor pessoal dos papéis geradores, aos quais é confiada a construção da identidade pessoal do ser humano. Sendo um dado inquestionável que a dignidade é um valor reconhecido a cada pessoa em si mesma, na sua consideração não é possível ignorar a sua relação com o outro. No processo de procriação, este elemento relacional entre dois seres adquire densidade exponencial. Ora, é a consideração da dimensão relacional da dignidade humana, ausente no acórdão no que con- cerne à reciprocidade da ligação que se estabelece entre a gestante e o nascituro, a parturiente e o neonato ou mesmo a puérpera e o bebé, que permite compreender que o problema de constitucionalidade atinente a este princípio fundamental não está na falta de previsão da revogabilidade do consentimento da gestante. Está antes na possibilidade do consentimento em si, para servir de simples instrumento à gestação e nascimento de uma criança que não se quer para filho. De resto, parece-me pouco coerente concluir – como faz o acórdão – que o regime previsto no artigo 8.º, n.º 8, da LPMA viola a dignidade da gestante por não estar consagrada a revogabilidade do consenti- mento, quando antes se afirmou que não viola a sua dignidade consentir na gestação para outrem precisa- mente por se entender que o regime assegura a vontade livre e esclarecida da gestante (cfr., e.g., pontos 28, 43, 46 e 47). Entender que a violação da dignidade humana está na irrevogabilidade do consentimento e não, logo a montante, na permissão do consentimento, em si mesmo considerado, ignora o paradoxo da «servidão voluntária». Como nota Francesco d’Agostino ( Justiça. Elementos para Uma Teoria, Principia, Cas- cais, 2009, pp. 26-27), «(…) A opção pela servidão voluntária é (…) existencialmente contraditória: quem escolhe livremente a escravidão sabe que desse modo se condena a si próprio a ver ser-lhe definitivamente subtraída a possibilidade de ulteriores escolhas livres». Por outro lado, também é pouco coerente sustentar a necessidade de previsão de revogabilidade do con- sentimento ao longo de todo o processo enquanto, simultaneamente, se utiliza como argumento para afastar a ideia da reificação ou de abandono da criança o facto de a renúncia da gestante à maternidade (artigo 8.º, n.º 1) permitir o estabelecimento da filiação a favor dos outros contratantes ab initio , já que os seus pais se encontram definidos antes mesmo da conceção (cfr. ponto 32). Estas incoerências argumentativas confirmam, a meu ver, que o problema de constitucionalidade colo- cado pela gestação de substituição prevista na LPMA não se confina a meros aspetos concretos do regime, como o acórdão sustenta, resultando antes de todo o modelo adotado naquele diploma, como de seguida explicarei.

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