TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
161 acórdão n.º 225/18 Tenho igualmente objeções à delimitação da última questão de constitucionalidade suscitada, respei- tante à norma do artigo 20.º, n.º 3, da LPMA. 2. É central para a análise da questão da constitucionalidade do artigo 8.º da LPMA que prevê a gesta- ção de substituição, enquanto forma de procriação com recurso a uma técnica de procriação medicamente assistida (PMA) confrontá-lo com o princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa humana, proclamado no artigo 1.º da Constituição, confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais unidade de sentido, de valor e de concordância prática, sendo um elemento essencial da sua interpretação e integração, diante da conceção que faz da pessoa como fundamento e fim da sociedade e do Estado. Desta forma, o valor eminente da dignidade humana determina os direitos fundamentais e é enformado pelo seu conteúdo. É esse também o contexto em que a Constituição proíbe, no artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , as técnicas de procriação lesivas da dignidade humana, determinando os limites para a regulamentação da PMA que hão de encontrar expressão nos diversos direitos fundamentais. Como refere o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, na linha do que se mostra con- signado igualmente na Convenção sobre Direitos do Homem e Biomedicina, «a decisão sobre a utilização de técnicas de PMA deve estar subordinada ao primado do ser humano, princípio fundamental que rejeita a sua instrumentalização, e consagra a dignidade do ser humano e consequente proteção dos seus direitos, em qualquer circunstância, face às aplicações [da] ciência e das tecnologias médicas (…)» (cfr. Relatório e Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida n.º 87/CNECV/2015, ponto III. 4., p. 11). 3. No entender do acórdão, somente a instrumentalização que anule ou desconsidere a autonomia pessoal pode ser considerada violadora da dignidade humana porque reduz a pessoa a uma coisa ou objeto (ponto 28). Mais, consigna-se mesmo no acórdão que, do ponto de vista da gestante, o que legitima a sua intervenção na gestação de substituição é a afirmação livre e responsável da sua personalidade – um modo de exercício do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, que, em última análise, se funda na sua dignidade (cfr. ponto 28). No desenvolvimento desta ideia, o acórdão empreende uma apreciação estratificada do processo de pro- criação através da gestação de substituição instituído na LPMA, diferenciando, num primeiro plano, ao nível do modelo, a perspetiva da gestante e a perspetiva da criança assim concebida, e, num segundo plano, desen- volvido já ao nível do regime, o momento da celebração do contrato e o momento do seu cumprimento. A metodologia argumentativa assim adotada reflete uma visão de pendor excessivamente individualista do presente problema de direitos fundamentais na medida em que analisa a validade constitucional do modelo proposto de gestação de substituição numa perspetiva da gestante isolada da relação que a liga ao ser em gestação. Desta forma, maximizando a dimensão individual da identidade pessoal neste contexto, o acórdão, no entanto, não dá o devido valor a toda a dimensão relacional que também a caracteriza. Ado- tando uma linha de pensamento segundo a qual em regra cada pessoa é o juiz da sua dignidade individual, reconduz a dimensão da dignidade da pessoa humana ao exercício da autonomia da vontade e da liberdade da gestante. Um tal afastamento do paradigma de matriz comunitária compromete o valor prescritivo da realidade natural e social em benefício da vontade individual, o que não posso acompanhar. Além de capturar a ideia de dignidade humana como mera expressão do individualismo, negligencia a verdade, como se esta não constituísse também um elemento relevante na dignidade humana. 4. É tentador procurar na liberdade e na vontade a resposta para a validade constitucional da gestação de substituição. Permite esconder o aspeto da controvérsia respeitante à instrumentalização da mulher. Mas é impossível evitar essa discussão.
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