TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
133 acórdão n.º 225/18 previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição –, podendo concluir-se que na sua adoção o legislador não tomou «primacialmente em conta o superior interesse da criança», conforme exigido pelo artigo 3.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos das Crianças. Nessa mesma medida, o legislador violou o dever do Estado de proteção da infância, consagrado no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição. B.6.3. A questão da indeterminabilidade do regime legal do contrato de gestação de substituição 51. O contrato de gestação de substituição celebrado nos termos legais torna juridicamente possível que uma criança nascida do ventre de uma mulher – a gestante – seja tida como filha de outra – a beneficiária. Em vista disso, tal contrato deve disciplinar comportamentos concretos da gestante que traduzem o modo como esta colabora em todo o processo, exercendo o seu direito fundamental ao desenvolvimento da perso- nalidade, bem como a liberdade de não constituir família com uma criança que tenha dado à luz (cfr. supra, respetivamente, os n. os 28 e 8). Mas, a partir do momento em que é legalmente admitido, aquele contrato faculta igualmente aos beneficiários a possibilidade de procriarem, ou seja, de constituir família com um filho que é geneticamente seu. Por outro lado, uma das condições legais da admissibilidade de tal contrato é ter sido previamente autorizado pelo CNPMA, sendo o seu conteúdo supervisionado pelo mesmo Conselho (cfr. os n. os 3, 4 e 10 do artigo 8.º da LPMA). Acontece que o legislador se limitou a prever a existência necessária de disposições sobre certas matérias, nomeadamente «as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez» – e a proibir disposições que imponham «restrições de comportamentos à gestante de substituição» ou «normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade» (vide ibidem , n. os 10 e 11), não dando mais indicações quanto aos limites positivos e negativos a observar pelas partes na conformação do conteúdo contratual. A este propósito refere Vera Lúcia Raposo: «Em suma, as normas sobre o contrato de gestação são escassas e dúbias. De modo que o conteúdo e regime destes contratos será quase totalmente edificado, por um lado, pelas próprias partes; por outro lado, pelo direito dos contratos. Ora, embora a liberdade contratual deva certamente desempenhar um papel decisivo neste ensejo, deveria ainda assim o legislador ter regulamentado algumas questões, como aliás é habitual suceder nos contratos mais propensos a abusos da liberdade contratual […] Prever uma figura jurídica e impor-lhe um par de proibições não é regulamentá-la e estes contratos, pela sua especial sensibilidade e pelos direitos e interesses envolvidos, mereceriam (e necessitariam) tal regulamentação. […] [As] especificidades que [o contrato de gestação de substituição] apresenta (aliás, nem se trata de um contrato típico) e a especial sensibilidade dos interesses envolvidos demandam uma adequação das regras contratuais, espe- cialmente no que respeita à responsabilidade contratual. Sucede que o legislador optou por não intervir. A Lei n.º 32/2006 é praticamente omissa quanto ao conteúdo do contrato e às consequências do seu incumprimento e as escassas normas que contém a esse respeito geram mais dúvidas do que respostas. De modo que caberá ao CNPMA, aos tribunais e eventualmente às partes criar uma regulamentação dos contratos de gestação mais ade- quada a estes cenários do que aquela que resulta estritamente do CC» (v. a Autora cit., “Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação…” cit., pp. 10 e 23-24). Na verdade, a lei é omissa quanto aos critérios de autorização prévia do contrato de gestação de subs- tituição e relativamente à supervisão do conteúdo do mesmo contrato, que, por sua vez, condiciona a mencionada autorização. E, todavia, tais critérios, desde logo por razões de igualdade, não podem deixar de ser uniformes para todos os contratos, especialmente, e tendo em conta a natureza das matérias em causa, no que se refere ao sentido das aludidas cláusulas de existência obrigatória e ao núcleo das restrições proibidas. Ou seja, a definição dos critérios em apreço revela-se essencial à operacionalização da gestação de substituição.
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