TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

131 acórdão n.º 225/18 a todo o tempo, qualquer interessado poder vir a suscitar dúvidas quanto à sua observância, mina a confiança na filiação legalmente estabelecida. Pense-se, por exemplo, na hipótese de, passados uns anos sobre a entrega aos beneficiários da criança nascida na sequência de um contrato de gestação de substituição – e do consequente registo da criança da criança como filha dos mesmos –, se descobrir que afinal os beneficiários com quem a criança atualmente vive efetuaram pagamentos à gestante que excediam numa dada percentagem o valor das «despesas decor- rentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestados» (artigo 8.º, n.º 5). Deve tudo regressar ao início abstraindo dos laços de convivência entretanto estabelecidos? É indiferente o tempo decorrido desde a entrega da criança? Ou o momento em que o pagamento em excesso foi realizado – antes, durante ou somente depois da execução do contrato? E a dimensão do excesso detetado? A solução deverá ser sempre a mesma quer esteja em causa um excesso de 10%, de 100% ou de 1000%? Mas também em relação aos demais pressupostos o regime da nulidade pode não se mostrar adequado. Por exemplo, a comprovação do pressuposto referido no n.º 2 do artigo 8.º pelo conceito indeterminado situações clínicas que justifiquem o recurso excecional à gestação de substituição pode igualmente dar lugar a dúvidas. A rigidez excessiva inerente à invocabilidade da nulidade sem limite de tempo torna-se evidente quando confrontada com a possibilidade de o procedimento criminal relativamente aos crimes tipificados no artigo 39.º da LPMA se extinguir, por prescrição, nos prazos de dois ou cinco anos, conforme a pena máxima aplicável [cfr. o artigo 118.º, n.º 1, alíneas c) e d) , do Código Penal]. Por outro lado, o regime da nulidade não permite diferenciações, seja em função da gravidade de cada causa, seja em função da realidade criada na sequência da execução de um contrato nulo. Nos casos em que o ovócito utilizado pertença a uma terceira mulher dadora, a solução quanto à maternidade prevista na lei geral é reforçada pelo n.º 2 do artigo 10.º da LPMA, segundo o qual «os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer». Assim sendo, afasta-se a solução de maternidade da terceira dadora, a qual manifestamente não faria sentido, na medida em que esta efetuou a doação do ovócito sem qualquer projeto parental face à criança a conceber. Porém, relativamente à situação de paternidade, deve continuar a ser considerado pai o beneficiário cujo material genético tenha sido utili- zado na conceção, uma vez que este não é um qualquer “terceiro dador” para efeitos do citado preceito. Mas, a verdade é que os gâmetas do beneficiário foram cedidos em função da concretização de um projeto parental em que a mãe da criança seria a beneficiária, e não a gestante, que, à partida, também acedeu em participar no processo sem querer ser mãe da criança que viesse a dar à luz. A densidade problemática da situação agrava-se, caso o embrião tenha sido gerado também a partir de um ovócito da beneficiária: a “mãe genética e social” com um projeto parental para a criança perde a maternidade para a “mãe jurídica”, que, todavia, não pretende sê-lo nem tem qualquer projeto parental relativamente à mesma criança. Naturalmente, é fácil compreender que a incerteza e as inúmeras implicações legais, familiares e sucessórias para a criança, numa situação deste tipo, são de extrema relevância, e que cabe ao Estado protegê-la, na medida do possível, através de uma modelação adequada do regime legal. As insuficiências e inadequação de um regime tão indiferenciado também foram denunciadas pelo CNECV, mesmo em relação à redação originária do artigo 8.º da LPMA, que no n.º 1 cominava a nulidade dos negócios jurídicos de «maternidade de substituição», retirando, no n.º 3, a pertinente consequência de que a «mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como mãe da criança que vier a nascer». Com efeito, pode ler-se no Parecer n.º 63/CNECV/2012: «[M]erece também reserva ética a solução constante da atual lei […], segundo a qual, nas situações de concre- tização de uma maternidade de substituição em contravenção ao disposto na lei, a mãe de gestação é considerada, para todos os efeitos legais, como mãe da criança nascida neste processo (art. 8.º, n.º 3, da lei atual).

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