TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
129 acórdão n.º 225/18 venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita –, mas também a continua- ção de uma relação com a criança nascida no quadro de um projeto parental que concorre com aquele em função do qual os beneficiários, num momento inicial, contribuíram com o seu material genético para que tal relação se pudesse estabelecer. Decerto que, do lado da gestante, pesam os citados argumentos decorrentes do seu direito ao desen- volvimento da personalidade e das exigências de atualidade do consentimento, por forma a assegurar que o cumprimento das obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição traduza uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação. Na hipótese ora considerada, a sua posição até se reforça em virtude de, com base num projeto parental próprio para a criança que se desenvolveu no seu ventre e que por si foi dada à luz, pretender exercer também o seu direito de constituir família, ainda que com uma criança relati- vamente à qual não pode ser considerada progenitora genética. Pese embora esta nova pretensão, também é menos evidente que as suas razões devam prevalecer sempre sobre as dos beneficiários. Afinal, o que está em causa para estes também é a afirmação de um projeto parental próprio que viabilize uma família com um filho geneticamente seu, ao menos em parte. Contudo, as soluções normativas em análise impõem a consequência contrária: a prevalência absoluta das razões dos beneficiários, não deixando qualquer espaço para ponderar, em cada caso, também aque- las que legitimamente a gestante pudesse invocar. A consequência dessa desconsideração total é o risco de instrumentalização da gestante, nos termos já referidos, incompatível com o respeito do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, sempre que, em função das vicissitudes ocorridas durante a gravidez ou o parto e do próprio comportamento dos beneficiários, não fosse de excluir que a separação da criança da gestante representasse para esta um sacrifício maior do que aquele que representaria para os beneficiários a não entrega da criança. Acresce a necessidade de considerar a criança entretanto nascida e cuja entrega está em causa, uma vez que é o seu interesse que deve presidir à solução do conflito entre os dois projetos parentais. É certo que, de acordo com as regras ora em análise, tal conflito nem deveria poder ocorrer. Mas, dado que se impõe a consi- deração da posição da gestante, tendo em conta as exigências do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e a relevância constitutiva da relação intrauterina, a importância da criança não pode ser obnubilada: a mesma não pode ser tratada como simples objeto numa disputa entre terceiros. A partir do momento em que o conflito entre o projeto parental dos beneficiários e o projeto parental da gestante não pode deixar de relevar juridicamente, atentos os interesses fundamentais da gestante, o critério principal para a respetiva solução tem de ser o superior interesse da criança. E tal só é possível no quadro de uma avaliação casuística, pois de outro modo negar-se-ia a condição de sujeito de direitos da criança, em violação da sua dignidade e o Estado violaria o seu dever de proteção da infância [artigos 1.º, 67.º, n.º 2, alínea e) , e 69.º, n.º 1, todos da Constituição; cfr. também supra o n.º 35]. Em suma, a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último, é inconstitucional por restringir excessivamente o direito da gestante ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, e o seu direito de constituir família (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição), estendendo-se tal juízo conse- quencialmente, e pelas mesmas razões, à norma do n.º 7 do artigo 8.º daquela Lei, segundo a qual a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é sempre tida como filha dos respetivos beneficiários. Na verdade, esta última norma, ao estabelecer um critério especial de filiação da criança nascida através do recurso à gestação de substituição no pressuposto de que a gestante prestou o seu consentimento livre e esclarecido a tal modo de procriação, não ressalva a possibilidade de revogação desse mesmo consentimento – revogação essa que, por sua vez, implica a aplicabilidade do critério geral de filiação previsto no Código Civil – que, conforme referido, constitui uma condição necessária da salvaguarda do direito ao desenvolvimento da gestante ao longo de todo o processo de gestação de substituição.
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