TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
124 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Na verdade, e como mencionado anteriormente, do ponto de vista da gestante, o que legitima a sua intervenção na gestação de substituição é a afirmação livre e responsável da sua personalidade – um modo de exercício do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, que, em última análise se funda na sua dignidade (cfr. supra o n.º 28). Ora, tal direito tem de ser assegurado ao longo de todas as fases em que se desdobra o processo de gestação de substituição: cele- bração do contrato, aplicação das técnicas de PMA, gravidez, parto e entrega da criança aos beneficiários. Consequentemente, quer a insuficiência de informação eventualmente viciante do consentimento inicial da gestante, quer a alteração posterior e imprevisível da sua vontade em razão de vicissitudes ocorridas durante a gestação ou o parto, justificam a possibilidade da ocorrência de situações não consideradas no consenti- mento por ela previamente prestado e, por isso mesmo, incompatíveis com a afirmação da sua personalidade. Ou seja, tendo a gestante deixado de querer continuar no processo de gestação de substituição tal como delineado no correspondente contrato, deixa também de poder entender-se que a sua participação em tal processo corresponde ao exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade. Deste modo, atentas as aludidas características físicas, biológicas, psíquicas e potencialmente afetivas da gravidez e do parto, a revogabilidade do consentimento inicialmente prestado é a única garantia de que o cumprimento das obrigações específicas de cada fase daquele processo continua a ser voluntário e, por isso, a corresponder ao exercício de tal direito. A pura e simples autovinculação antes do início do processo de gestação de substituição não permite acautelar suficientemente tal voluntariedade ao longo de todo o processo. Por outras palavras, a aludida revogabilidade corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, o qual constitui um alicerce fundamental do modelo português de gestação de substituição. E à semelhança das exigências de gratuitidade e de não subor- dinação económica para garantir a liberdade de consentimento inicial, a revogação em causa também tem de ser livre, no sentido de excluir, pelo menos, qualquer indemnização. Com efeito, as obrigações contratuais pressupõem o consentimento, pelo que, desaparecendo este, aquelas também deixam de poder subsistir, não havendo lugar para qualquer incumprimento contratual. Simetricamente, o estabelecimento de limites legais à revogabilidade do consentimento da gestante não pode deixar de corresponder à definição de outras tantas restrições do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, nomeadamente para salvaguarda do interesse dos beneficiários e do respetivo projeto parental. Apesar de vinculante desde o início, o consentimento da gestante, para garantia da sua dignidade pessoal, tem de se manter atual ao longo de todo o processo de gestação de substituição, nomeadamente enquanto aquela cumpre as obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição (cfr. supra os n. os 39 e 42). Consequentemente, a imposição sem exceção da vinculatividade de tal consentimento – que é prestado ainda antes da transferência do embrião –, até ao fim do processo de gestação de substituição, apesar de o mesmo não se poder ter como totalmente esclarecido – dada a imprevisibilidade de todas as vicissitudes que podem ocorrer durante o período de gestação e durante o próprio parto –, nem poder ante- cipar alterações de circunstâncias subjetivas essenciais ocorridas durante o mesmo período, revela-se como uma limitação severa da mencionada exigência de atualidade. Com efeito, a vinculação ao consentimento anteriormente prestado não impede que, por razões atendíveis inerentes à necessária incompletude da informação inicial ou à própria dinâmica da gravidez, em algum momento até depois do parto, a gestante seja confrontada com uma obrigação – continuar a suportar gravidez de um filho destinado aos beneficiá- rios ou proceder à sua entrega após o parto – cujo cumprimento já não corresponde à sua vontade mais pro- funda e antes constitua, para si, uma violência. Ora, o consentimento que lhe é exigido para participar num processo de gestação de substituição visa também prevenir tal tipo de situações, uma vez que as mesmas convertem – e degradam – o que foi concebido como ato de solidariedade ativa numa instrumentalização atentatória da sua dignidade pessoal. O artigo 14.º, n.º 4, da LPMA, aplicável à gestante por remissão do artigo 8.º, n.º 8, daquela Lei, e confirmada pelo disposto no n.º 5 do mesmo artigo 14.º («o disposto nos números anteriores é aplicável à gestante»), só admite a livre revogação do seu consentimento «até ao início dos processos terapêuticos de
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