TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
120 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de gestação de substituição é, precisamente, a consideração de que o mesmo não põe em causa a dignidade da gestante (cfr. supra os n. os 28 e 29). 40. As aludidas dificuldades de articulação jurídico-formal do consentimento e do contrato transpa- recem, desde logo, na própria LPMA. Não obstante, e como referido, o legislador conservou a respetiva autonomia, assegurando que, pelo menos «até ao início dos processos terapêuticos de PMA», o regime do contrato não pode pôr em causa as garantias legais conexas com a liberdade do consentimento. Com efeito, a aplicabilidade do disposto no artigo 14.º, n.º 4, daquele diploma no âmbito da gestação de substituição, tanto aos beneficiários como à gestante – resultando tal aplicabilidade das remissões contidas no artigo 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5 –, significa que, mesmo existindo já contrato assinado entre as partes, qualquer uma delas pode revogar o consentimento previamente dado, fazendo desaparecer o pressuposto da celebração do pró- prio contrato e, consequentemente, determinando a sua total ineficácia. O n.º 10 do artigo 8.º da LPMA estatui que a «celebração de negócios jurídicos de gestação de substi- tuição é feita através de contrato escrito estabelecido entre as partes», os beneficiários e a gestante. É nesse acordo, supervisionado pelo CNPMA, que devem estar reguladas certas questões («as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez» – n.º 10); por outro lado, o mesmo acordo «não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade» (n.º 11 do mesmo artigo) nem prever pagamentos à gestante que ultrapassem «o valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento próprio» ( ibidem , n.º 5). Em ordem a verificar a observância dos requisitos de legalidade do contrato, este tem de ser previamente autorizado pelo CNPMA ( ibidem , n.º 4). Mas o n.º 8 do mesmo artigo 8.º refere-se expressamente à «validade e eficácia do consentimento das partes», autonomizando-o do «regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição», e determinando que a tal matéria seja aplicado o disposto no artigo 14.º da LPMA. Este preceito, concebido especificamente para a aplicação das técnicas de PMA, tem como epígrafe «Consentimento» e disciplina as condições, termos e conteúdo de uma declaração negocial desse tipo, que, por natureza é unilateral. Como se referiu supra no n.º 8, o consentimento prestado no quadro da gestação de substituição não se limita a autorizar a aplicação de uma dada técnica de PMA; o mesmo vincula o emitente em relação a todo o processo de gestação de substituição, sendo, por isso, mais complexo e abrangente. É mais complexo, porque exige uma declaração de consentimento dos beneficiários e outra da gestante, as quais não se dirigem apenas ao médico responsável, mas também aos próprios interessados: os beneficiá- rios consentem, também perante a gestante, que nesta seja implantado um embrião constituído com recurso a gâmetas de, pelo menos, um deles; e a gestante consente, também perante os beneficiários, em que lhe seja implantado esse mesmo embrião. O consentimento em apreço é também mais abrangente, uma vez que o seu objeto é não só a aplicação de uma técnica de PMA, mas todo o processo gestacional e o próprio parto. Daí a previsão no artigo 14.º, n.º 6, de que «os beneficiários e a gestante de substituição [sejam] ainda [– isto é, para além das informações respeitantes aos benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização de técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas –] informados, por escrito, do significado da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal». Deste modo, o consentimento dos beneficiários implica a vontade positiva de que o embrião criado com recurso ao seu material genético, implantado na gestante, desenvolvido por esta durante a gravidez e por ela dado à luz, seja tido como seu filho. Do mesmo modo, o consentimento da gestante traduz a vontade posi- tiva de que a criança que vier a trazer no seu ventre e que vier a dar à luz não venha a ser sua filha, mas dos beneficiários. Esta autovinculação direcionada inerente ao consentimento prestado no âmbito da gestação de substituição explica a dificuldade em separá-lo de um acordo entre as partes. E, na verdade, faz todo o sentido acomodar as exigências relativas ao consentimento no próprio contrato.
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