TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

118 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A questão de constitucionalidade que se pode suscitar é a de saber se a família em que tais situações ocorrem ainda corresponde ao conceito constitucional homónimo: família enquanto «elemento fundamen- tal da sociedade» com «direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros» (artigo 67.º, n.º 1, da Constituição). O conceito constitucional de família não se encontra definido e o seu domínio normativo apresenta-se cada vez mais diferenciado quanto às soluções que admite. As sucessivas reformas do direito da família dão conta disso mesmo. Como reconhece Jorge Duarte Pinheiro, o «Direito da Família é especialmente permeá- vel à realidade social e às posições ideológicas lato sensu (incluindo visões políticas, religiosas ou conceções de vida laicas e apolíticas», reconduzindo-se o direito português atual, no que se refere ao modo de conexão com os valores, a uma matriz pluralista, em virtude de «admitir a relevância de diferentes ordens de dever-ser social, dentro de certos limites, que são normalmente definidos pelo pensamento da maioria» (vide Autor cit., O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 53-57). Por outro lado, o programa normativo de tal conceito deve ser densificado a partir de referências cons- titucionais que sejam relevantes, como por exemplo, o artigo 36.º, n.º 1, de onde decorre que o conceito constitucional de família não implica o casamento (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anot. III ao artigo 67.º, pp. 856-857). Ora, a norma do artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , referente à regulação da PMA, desempenha uma função similar: a família constitucionalmente prevista abre-se à possibilidade de PMA; não a limita. Mais: a efetivação das condições que permitam a realização pessoal dos membros da família é, ela própria, um direito da família. Não se vislumbra, assim, que a garantia institucional da família revista uma definição de contornos tão precisa, que habilite a sua mobilização como obstáculo constitucional a que o legislador ordinário permita a gestação de substituição em determinadas condições. Só por si, este modo de procriação não colide com o conceito constitucionalmente adequado de família. Pelo contrário, o mesmo modo de procriação apresenta- -se como (mais) um fator de dinamização da família, possibilitando o estabelecimento de vínculos de filiação aí onde, por razões de saúde, os mesmos não seriam possíveis. B. 6. Questões de inconstitucionalidade suscitadas por certos aspetos do regime da gestação de substituição lícita 38. A inexistência de uma incompatibilidade de princípio do modelo português de gestação de substi- tuição com a Constituição não significa que determinados aspetos do seu regime jurídico não possam susci- tar questões de inconstitucionalidade. A ser assim, não estará em causa o modelo, em si mesmo considerado, mas tão-somente certas soluções adotadas na sua concretização legislativa. Desde que as soluções em causa se compreendam no âmbito objetivo do pedido – os n. os 1 a 12 do artigo 8.º da LPMA e demais normas da mesma Lei que se refiram à gestação de substituição – nada obsta a que o Tribunal aprecie a sua eventual inconstitucionalidade (cfr. o já citado artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional). Do ponto de vista substancial, isto é, no que se refere ao conteúdo das soluções adotadas, podem identificar-se problemas de duas ordens, de resto já pré-anunciados na análise desenvolvida a propósito da salvaguarda da dignidade da gestante e da dignidade da criança (vide, em especial, supra o n.º 30). Em primeiro lugar, cumpre analisar a efetividade da garantia de autonomia ética e pessoal da gestante de substituição, indispensável à preservação da sua dignidade, que age no âmbito de um processo biológico, psíquico e potencialmente emocional-afetivo como a gravidez. Com efeito, se a gestação de substituição é legítima, do ponto de vista da gestante, enquanto exercício da sua liberdade de exteriorização da persona- lidade – uma liberdade de agir de acordo com um projeto de vida próprio e autoconformador da própria personalidade (cfr. supra o n.º 28) – importa assegurar que o sentido de tal atuação não seja invertido e que, a meio do processo, se converta em mero instrumento ao serviço da vontade dos beneficiários. O legislador foi ao encontro desta preocupação por duas vias: exigindo, por um lado, como pressuposto do próprio contrato de gestação de substituição, que a gestante seja informada dos benefícios e riscos conhecidos, bem como das implicações éticas, sociais e jurídicas do compromisso que se propõe assumir e que a mesma preste um

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