TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

117 acórdão n.º 225/18 A proposta de parecer [negativo] fundamenta-se nas seguintes considerações: […] [6. A] GDS acarreta uma profunda mudança civilizacional, ética e social, quer na realidade da família, quer no sentido da maternidade e da filiação, o que reclama uma profunda reflexão. […] 8. A ambiguidade que decorre da questão “quem é a mãe” – a mãe genética ou a gestante – apenas pode ser determinada de modo arbitrário pelo direito […] A discordância, a esse respeito, entre os Estados que aceitam a GDS mostra que esta induziu no conceito de maternidade uma ambiguidade que precisa de uma medida jurídica para ser superada (por oposição ao adágio “ mater semper certa est ”). […] 10. A GDS tem consequências sobre o conceito de filiação: altera o conceito natural da filiação. Dissocia inten- cionalmente filiação natural e filiação social; contrariamente ao ato de adoção, que não é responsável nem pela filiação natural nem pela ausência de relação entre filiação natural e filiação social, a GDS constitui a iniciativa, explícita e voluntária, desta dissociação […]. 16. Se a GDS for realizada com a participação de uma familiar, é previsível uma perturbação psicológica devida ou a um curto-circuito geracional (se a gestante é ao mesmo tempo avó do nascituro) ou a uma confusão na ima- gem da maternidade que se cria no ser humano nascido mediante GDS. […]» Em sentido convergente, João Loureiro articula juridicamente a seguinte posição, com base na garantia institucional da família consagrada no artigo 67.º da Constituição: « Homo familiaris , não são indiferentes as estruturas simbólicas do parentesco, a começar pelo tabu do incesto [… V]alem aqui as pertinentes considerações de um relatório do The President’s Council on Bioethics : “a procriação humana, embora aparentemente um ato exclusivamente privado, tem um profundo significado público. Deter- mina as relações entre uma geração e a próxima, conforma identidades, cria vínculos, e estabelece responsabilidades pelo cuidado e criação dos filhos (e o cuidado pelos pais idosos ou outro parente necessitado). Se a mãe é mãe, mas a avó também é, de facto, mãe ao dá-lo à luz, e se o útero releva, mais do que a questão da multiplicação […], assistimos, paradoxalmente, a um pôr em questão a separação fundante dos laços familiares, a desordem e a uma diferenciação indiferenciante, que esquece o profundo simbolismo da narratividade da criação, assente numa ordem estruturada precisamente na referida separação [o que origina, segundo as palavras de Onora O’Neill,] relações familiares que classifica como “confusas” ou “ambíguas”. [A]figuras-se-nos que a CRP não permite a abertura de portas a uma experimentação, que, neste caso, dramatica- mente, não é, uma mera “experiência do pensamento”» (v. Autor cit., “Outro útero é possível…” cit., pp. 1425-1427). Apesar de a gestação de substituição permitida pelo artigo 8.º da LPMA não se limitar ao âmbito fami- liar – e, por isso, não se reconduzir necessariamente a uma substituição intrafamiliar –, é inegável a possibi- lidade – se não mesmo a probabilidade – de surgirem situações como as descritas. Em qualquer caso, e independentemente da maior ou menor perceção que delas possam ter, as posições recíprocas da beneficiária, da gestante e da criança nascida na sequência do recurso à gestação de substituição estão perfeitamente definidas do ponto de vista jurídico. É esse, precisamente, o objetivo da adaptação do direito da filiação geral estabelecido no Código Civil à situação especial da gestação de substituição (cfr. o artigo 8.º, n.º 7, da LPMA; vide também supra o n.º 8). Consequentemente, o perfil jurídico-normativo da instituição família, de modo particular no que respeita ao seu âmbito mais restrito – a chamada “família nuclear” –, não é afetado pela gestação de substituição: a criança gerada pela avó ou pela tia por conta, res- petivamente, de uma filha ou de uma irmã, para o direito, continua a ser ou só neta e sobrinha de cada uma delas; ou, caso ocorra alguma vicissitude invalidante do contrato de gestação de substituição, somente filha. Acresce que o critério da filiação em causa não é (juridicamente) arbitrário, uma vez que se funda na eficácia de um contrato de gestação lícito, que, no ordenamento jurídico português, à semelhança do que sucede no âmbito de outras ordens jurídicas, desempenha uma função jurídico-social com relevância ao nível da própria Constituição.

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