TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
112 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A gestação de substituição também exige o recurso a uma técnica de PMA, uma vez que a gestante, que não pode ser a dadora de qualquer ovócito usado no concreto procedimento em que é participante (artigo 8.º, n.º 3, da LPMA), para ficar grávida, recebe um embrião constituído a partir de gâmetas de terceiros. A sua gravidez compara, neste aspeto, com a gravidez de outras beneficiárias de PMA heteróloga. Mas, por outro lado, a gestação de substituição diferencia-se da aplicação simples de uma técnica de PMA, em virtude de o útero que recebe o embrião pertencer a uma mulher, que não aquela que é conside- rada beneficiária do processo e que será tida como a mãe da criança a nascer. Sucede que esta diferença em nada interfere com o desenvolvimento intrauterino: da perspetiva do nascituro, o mesmo em nada se distin- gue por ocorrer no seio do útero da gestante de substituição. E, após o parto, a criança é entregue à bene- ficiária prevista ab initio como sendo a sua mãe, pelo que não se justifica falar num “abandono” da criança logo após o nascimento. Ou seja, a criança nascida integra-se, se tudo correr conforme previsto, na família da beneficiária e, nesse contexto, tem potencialmente uma vida igual à de qualquer outro ser humano, em nada de essencial se distinguindo de outros filhos nascidos na sequência do recurso a técnicas de PMA. Por outro lado, é inerente às diferentes modalidades de procriação com assistência médica uma forma- lização jurídico-contratual (por exemplo, dos beneficiários com o centro onde decorrerá o processo terapêu- tico ou dos dadores de gâmetas com o centro). Na gestação de substituição, acresce a esses contratos o acordo entre os beneficiários e a gestante, que regula também a fase da gestação. O objeto imediato destes contratos nunca é a criança em si mesma considerada. Diferentemente, e deixando de lado as relações com os dadores, os mesmos visam a conceção e a gestação, enquanto funções necessárias para que uma criança, relativamente à qual existe um projeto parental pré-definido, possa nascer. Uma vez nascida, essa criança integra-se numa família, tal como as demais crianças que nascem na sequência da reprodução por via de ato sexual. A prévia celebração dos contratos que regulam as técnicas de PMA ou a gestação de substituição, que foram indispen- sáveis para que tal criança nascesse, em nada afetam a sua dignidade. Pelo exposto, é justificado um paralelismo com o que ocorre em relação à PMA: tal como nesta, o recurso à gestação de substituição para concretizar um projeto parental, só por si, também não viola a digni- dade da criança nascida na sequência de tal forma de reprodução. 33. Esta conclusão não é afastada pela quebra da ligação uterina pressuposta na execução do contrato de gestação de substituição. Poderá, nesse caso, estar em causa o superior interesse da criança, mas já não direta e autonomamente a sua dignidade. Depois do seu nascimento, os interesses da criança podem ser afetados de muitas formas, positiva ou negativamente. Só se poderia falar de uma afetação da criança na sua dignidade, caso a gestação de substituição implicasse, por si só, uma necessária afetação negativa do novo ser em termos de comprometer o seu desenvolvimento integral num ambiente familiar normal (artigo 69.º, n. os 1 e 2, da Constituição). A Constituição protege a vida intrauterina (vide a jurisprudência em matéria de interrupção voluntária da gravidez – Acórdãos n. os 25/84, 85/85, 288/98, 617/06 e 75/10) e, bem assim, a vida de embriões, «no ponto em que o embrião, ainda que não implantado, é suscetível de potenciar a vida humana» (Acórdão n.º 101/09), pelo que não é constitucionalmente admissível uma intervenção nessas fases que intencional e necessariamente resulte num ser humano diminuído e sem plena capacidade de autodeter- minação. Então, sim, ocorreria uma instrumentalização ab initio do novo ser às finalidades de tal prática que não poderia deixar de se qualificar como degradante. Porém, não existe a evidência de uma necessária lesão da criança causada pela sua separação da mulher que a deu à luz. No relatório elaborado em 2012 pelo Presidente do CNECV pode ler-se a este respeito: «Alguns estudos, no âmbito da Psicologia e Pediatria, avaliaram a relação entre as crianças e os pais, e os respeti- vos níveis de bem-estar, responsabilidades parental e educativa, com base na distinção entre as famílias consideradas naturais e as resultantes de técnicas de PMA (nomeadamente com recurso à gravidez de substituição), concluindo na generalidade pelo reconhecimento de boas competências de parentalidade e capacidade de afeto dos pais e
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