TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

111 acórdão n.º 225/18 «[A gestação de substituição e as restantes técnicas de PMA heteróloga] evidenciam a conversão do legítimo desejo de um filho, enquanto coincidente na sua dimensão biológica com o projeto afetivo, num ilegítimo direito a um filho que, enquanto tal, seria reduzido na sua identidade a um mero objeto ou bem cuja posse seria suscetível de ser reclamada como direito por outrem» (v. Autora cit., “Mudam-se os tempos, manda a vontade. O desejo e o direito a ter um filho” in Ana Sofia Carvalho (Coord.), Bioética e Vulnerabilidade, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 49 e segs., pp. 55-56). Contudo, estes argumentos provam de mais, como sublinham vários outros Autores. Vera Lúcia Raposo sublinha, desde logo, que a mesma visão também pode ser invocada quanto a proje- tos parentais de pessoas casadas que procuram ter filhos para salvar a sua relação, para se realizarem pessoal- mente ou para outros fins extrínsecos ao interesse dos mesmos (vide Autora cit., De Mãe para Mãe – Questões Legais e Éticas suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 48). Marta Costa e Catarina Saraiva Lima, pelo seu lado, consideram que o recurso à gestação de substituição, só por si, não viola a dignidade da criança nos termos referidos, salientando que esta técnica não é mais lesiva da dignidade do novo ser do que qualquer outra técnica de PMA heteróloga que se encontra atualmente per- mitida (vide Autoras cits., “A maternidade de substituição à luz dos direitos fundamentais de personalidade” in Lusíada, n.º 10, 2012, pp. 237 e seguintes, pp. 287-289). E Reis Novais chama a atenção para a seguinte consideração, que vale para qualquer projeto parental, independentemente de o mesmo se concretizar por via de ato sexual ou por via de PMA: «Quando um casal programa a conceção de um filho [...] há aí inevitavelmente uma instrumentalização, mas não há violação da dignidade, já que não há uma instrumentalização do novo ser. A conceção do novo ser foi um meio, um instrumento para prosseguir determinado objetivo, podendo dizer- -se que há instrumentalização no ato de conceção, no sentido de que a conceção do novo ser e a sua integração na família é decidida em função da visão de felicidade dos membros do casal, mas não há instrumentalização do novo ser enquanto tal, uma vez que este, quando surge no Mundo, terá, potencialmente, uma natureza e uma vida exatamente iguais às de qualquer outro ser humano. No decurso da sua vida normal, essa pessoa pode passar por episódios em que a sua dignidade seja desrespeitada, mas exatamente como se verificará com qualquer outra pessoa e sem qualquer relação intrínseca com a instrumentalização detetada no ato de conceção. Se no contexto familiar em que nasce, o novo ser for tratado e amado como qualquer outro filho – e é essa também a intenção e o projeto do casal que projetou o seu nascimento –, o facto de a sua conceção e nascimento terem servido para beneficiar a vida do casal, em nada o afeta. Nesse sentido, não se percebe nesse projeto qualquer violação da dignidade da pessoa humana. Só por si, instrumentalização envolvendo a conceção de novas pessoas ou novos seres não significa a violação da dignidade humana» (v. Autor cit., A Dignidade da Pessoa Humana, vol. II, cit., pp. 120-121; v. também a nota 99). O CNECV também afirmou no seu Parecer n.º 63/CNECV/2012: «[a] motivação, a intenção e o inte- resse de quem recorre às técnicas de PMA para gerar um novo ser é sempre uma motivação de benefício, de realização ou de satisfação pessoais e que se traduz na intenção de procriar, de gerar descendência, de assumir maternidade ou paternidade, de constituir família, porque se pensa que isso será bom para o próprio e, sendo o caso, para o projeto parental que se comunga com alguém, acompanhado da convicção – a não ser que se estivesse no domínio de patologia que pode ocorrer em qualquer situação – de que o projeto parental será igualmente bom para o novo ser» [ponto 1, alínea c) , p. 7]. Pode mesmo dizer-se – numa formulação próxima da utilizada no Acórdão n.º 101/09 – que o artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da Constituição, ao admitir a PMA e impor a sua regulação em termos que «salva- guardem a dignidade da pessoa humana», tem implícita a ideia de que o recurso a técnicas de PMA para concretizar um projeto parental, só por si, não viola a dignidade da criança nascida na sequência de tal forma de reprodução. Aliás, não fora a mesma técnica, e tal criança nem sequer existiria.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=