TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
110 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL seu projeto de procriação e de constituir família, o superior interesse da criança que nascer na sequência do processo de gestação, o direito ao desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação em matéria repro- dutiva de todos os envolvidos e a necessidade de proteção da dignidade da mulher que assume o papel de gestante de substituição, seja no momento em que celebra o contrato com os beneficiários ou no momento em que lhe são aplicadas as técnicas de PMA, seja durante o período em que efetivamente se encontra grávida e até depois do parto. Além da criança, esta mulher é, como referido, a parte mais vulnerável, se se atender aos riscos já assinalados de coerção e aos riscos inerentes a uma gravidez, designadamente, riscos de aborto, gravidez ectópica, pré-eclâmpsia e outras complicações obstétricas, que tendem a aumentar com o número de gestações. De resto, a natureza da gravidez enquanto fenómeno biológico, psíquico e potencialmente afetivo, e o seu dinamismo próprio, são igualmente aptos a justificar reponderações. B.4.2. A questão da dignidade da criança nascida na sequência do recurso à gestação de substituição 31. A principal questão suscitada a propósito da dignidade da criança nascida na sequência do recurso à gestação de substituição respeita ao seu tratamento, desde antes do nascimento, como «objeto de um negócio jurídico», o que seria determinante da sua coisificação. Sustentam os requerentes, com efeito, que a criança que vier a nascer é tratada como «um produto final que pode acabar por ser rejeitado por todos ou, pelo contrário, querido por todos», sem que seja dada resposta satisfatória a problemas fundamentais para os seus interesses (por exemplo, o impacto da quebra da ligação estabelecida durante a gestação ou a salvaguarda do superior interesse da criança em situações de conflito entre a gestante e os beneficiários, antes ou depois do nascimento). Salientam também que a referência à dignidade da pessoa humana feita no artigo 67.º, n.º 2, alínea e) , da Constituição pretende salvaguardar, além dos direitos das «pessoas que mais diretamente pode- rão estar em causa por efeito de aplicação das técnicas de PMA», também os direitos das pessoas nascidas na sequência da aplicação das mesmas técnicas, incluindo neste universo «tanto [a] pessoa já nascida como [a] pessoa desde a sua conceção». Importa, em todo o caso, separar os problemas atinentes à dignidade da criança considerada isolada- mente – que, de acordo com a aludida “fórmula do objeto”, se prendem com o seu eventual tratamento degradante, nomeadamente em resultado de se estar perante um “direito a uma pessoa” – daqueles que já relevam de uma conjugação da dignidade com o dever de proteção estadual dos seus interesses, previsto no artigo 69.º, n. os 1 e 2, da Constituição, como será o caso do não acautelamento das consequências psicológi- cas e emocionais da quebra da ligação uterina decorrente da obrigação de entrega da criança aos beneficiários do contrato de gestação de substituição. Embora este modo de procriação possa contender com ambos os parâmetros constitucionais em causa – a dignidade da pessoa humana e o dever de proteção da infância –, é diferente a intensidade do grau de exigência de conformidade de cada um deles: a salvaguarda da dignidade humana impõe-se a qualquer outra consideração, enquanto o dever de proteção da infância admite ponde- rações com outros interesses constitucionais. 32. A ideia de que a conceção de uma criança para ser posteriormente entregue a outrem consubstancia um inadmissível “direito a uma pessoa”, implicando, por conseguinte, a coisificação da criança e a sua trans- formação no objeto de um acordo celebrado entre adultos com vista a satisfazer os seus desejos é igualmente articulada por diversos Autores. Paulo Otero, por exemplo, considera haver nos contratos de gestação de substituição gratuitos uma violação do princípio da humanidade, dado que a criança é vista como um meio de alcançar fins que lhe são alheios. Além disso, entende que a dignidade do novo ser também é violada a partir do momento em que este é gerado já com o propósito de ser abandonado logo após o nascimento (vide Autor cit., “A dimensão ética da maternidade de substituição”, cit., pp. 87-88). Já Maria Patrão Neves pondera o seguinte:
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