TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
107 acórdão n.º 225/18 perante si mesma e os beneficiários e, porventura, perante o círculo dos seus mais próximos, é o oposto da sua degradação. Com efeito, entendida como atuação de uma solidariedade ativa – ou até como entrega por amizade ou amor –, a gestação de substituição não pode deixar de ser vista como exercício da liberdade de exteriorização da personalidade ou liberdade de ação de acordo com o projeto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias – uma das dimensões do direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição… , cit., anot. III ao artigo 26.º, pp. 463-464) – que é indissociável da liberdade de ação necessária à autoconformação da identidade própria de um sujeito autodeterminado, o mesmo é dizer, com a dignidade própria do ser humano. Em sentido convergente, afirma Guilherme de Oliveira: o direito fundamental consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição deve ser ponderado no quadro da discussão sobre a admissibilidade (e legitimidade quanto à imposição dos respetivos limites) de utilização de técnicas de PMA, na medida em que «a decisão de procriar tem implicações grandes em vários domínios – psicológico, fisiológico, sanitário, económico – e não pode deixar de constituir uma decisão estruturante da autonomia individual e da liberdade pessoal» [vide Autor cit., “Restrições de acesso à parentalidade na medicina de reprodução” in Lex Medicinae , Ano 10, n.º 20 (2013), p. 7]. Deste modo, a dignidade humana daquela que se assume como gestante de substituição não é violada; pelo contrário, a sua participação na gestação de substituição afirma uma liberdade de ação que, em última análise, se funda nessa mesma dignidade, já que os «diversos direitos enunciados no artigo 26.º são, em qual- quer caso, hipóteses típicas concretizadoras de um mesmo princípio fundamental de respeito pela dignidade da pessoa» (assim, vide Rui Medeiros e António Cortês in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição… , cit., anot. III ao artigo 26.º, p. 608). Como referido acima, a propósito da “fórmula do objeto” (cfr. supra o n.º 22), a instrumentalização lesiva da dignidade do ser humano não pode ser entendida mecanicamente; antes exige uma apreciação sobre o respetivo impacto concreto no valor intrínseco de cada pessoa, e muito particularmente na sua capacidade de autodeterminação e de afirmação livre e responsável da sua personali- dade (advertindo para a necessidade de distinguir quanto aos termos em que cada um é instrumentalizado ou se deixa instrumentalizar, vide Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana , vol. II, cit., pp. 122-123). Somente a instrumentalização que anule ou desconsidere essa autonomia pessoal, no presente ou para o futuro, pode ser considerada degradante porque reduz a pessoa a uma coisa ou objeto e, como tal, violadora da dignidade humana. Porém, não é isso que se verifica com a gestante de substituição, já que esta, enquanto tal, e conforme previsto no artigo 8.º da LPMA, atua no exercício de uma liberdade de ação fundada na sua própria dignidade. No Acórdão n.º 101/09, já se tinha afirmado, a propósito da opção legal de não incriminar a materni- dade de substituição gratuita: «[A] maternidade de substituição gratuita tende a ser vista como menos censurável [do que a onerosa], por revelar altruísmo e solidariedade da mãe gestadora em relação à mulher infértil, e por não haver, da parte desta, um desrespeito pela dignidade da mãe gestadora, por não ocorrer aqui nenhuma tentativa de instrumentalização de uma pessoa economicamente carenciada, por meio da fixação de um «preço», como sucede nas situações de maternidade de substituição onerosa.» Além disso, a mesma conclusão mostra-se alinhada com o entendimento que é possível retirar da análise do direito internacional e do direito comparado (vide supra as secções B.2. e B.3.), tanto por via direta (como no caso da Grécia e do Reino Unido, não falando já de diversos Estados federados dos Estados Unidos da América), como por via indireta (como sucede, por exemplo, na jurisprudência do Tribunal de Justiça, na Alemanha, na Áustria ou em França). E, bem assim, com a posição do CNECV expressa em 2012 quanto à admissibilidade de princípio da gestação de substituição:
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