TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
104 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Assumir o contrário corresponde a uma redução – ainda que temporária – da condição de mulher livre, ativa e socialmente comprometida (enquanto trabalhadora, empreendedora, criadora ou mãe) a um estado inca- pacitante. Ora, a gravidez, implicando vulnerabilidade e exigindo cuidados especiais, não corresponde a uma incapacidade. A mulher grávida, no essencial, continua tão livre e autodeterminada nos planos intelectual e físico (incluindo neste a dimensão sexual) como antes, não representando os mencionados cuidados mais do que condicionamentos limitados, que se justificam em razão do bem-estar da criança que vai nascer e da própria grávida. É, por isso, manifestamente exagerado considerar-se que a gestação de substituição implica uma subor- dinação da gestante em todas as dimensões da sua vida ao interesse dos beneficiários, como se se tratasse de uma situação de apropriação, equivalente a “escravatura temporária” consentida. A “existência” da gestante, globalmente considerada, não tem de ser colocada ao serviço dos beneficiários e, por conseguinte, não é toda a sua vida que é instrumentalizada. Tão pouco existe um direito dos beneficiários à utilização da gestante. O compromisso que esta assume perante os beneficiários limita-se à observância dos cuidados normais numa qualquer gravidez, em ordem a poder cumprir, após o nascimento, a obrigação de entrega da criança. Daí a proibição de imposição contratual de «restrições de comportamentos à gestante de substituição» ou de «nor- mas que atentem contra os seus direitos, liberdades e garantias» estatuída no artigo 8.º, n.º 11, da LPMA. 27. Relativamente à questão da instrumentalização da gestante, não pode abstrair-se da causa-função do contrato de gestação de substituição (a razão que levou o legislador a autonomizá-lo e a excetuá-lo da regra geral da proibição estabelecida no artigo 39.º da LPMA) nem das próprias motivações e condições em que a gestante o celebra – aspetos que são, todos e cada um deles, decisivos para a afastar a ideia de uma degradação ( Herabwürdigung ) desta última. A gestação de substituição, tal como prevista no artigo 8.º, n. os 2 a 6, da LPMA, visa criar condições para que os beneficiários, confrontados com a impossibilidade de procriar – podendo tal impossibilidade ser absoluta ou relativa – devido à falta de condições para suportar uma gravidez, possam, ainda assim, tentar fazê-lo com a colaboração voluntária de uma terceira pessoa. Sublinhe-se que, devido à exigência da presença de gâmetas de pelo menos um dos beneficiários exigida pelo artigo 8.º, n.º 2, da LPMA, a gestação de substi- tuição só é admissível como modo subsidiário de (tentar) assegurar a reprodução dos beneficiários, isto é, que os mesmos consigam ter um filho que, pelo menos em parte, seja da sua descendência biológicas; e não como via para que os pais intencionais estabeleçam simplesmente um vínculo jurídico de filiação com uma criança. Assim, num quadro em que a PMA heteróloga já era admitida a título subsidiário (cfr. o artigo 10.º, n.º 1, da mesma Lei e a apreciação feita no Acórdão n.º 101/09), e, apesar da alteração de paradigma resul- tante do novo artigo 4.º, n.º 3, da LPMA, também o legislador entendeu permitir que, apenas nos referidos casos – e, portanto, a título excecional – a gestante de substituição se disponha a engravidar, recorrendo por exemplo à implantação de embrião ou a outras técnicas de PMA equivalentes (artigos 27.º e 47.º da LPMA). A gestação de substituição tem, por isso, uma relevância constitucional positiva, enquanto modo de rea- lização de interesses jurídicos fundamentais dos beneficiários, que, por razões de saúde, ficaram prejudicados. Estão em causa, nomeadamente, o direito de constituir família e o direito de procriar. A correlação destes direitos foi assumida no Acórdão n.º 101/09, aceitando o Tribunal, na senda do que defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, que «a PMA poderá porventura ser considerada, ainda, uma forma de exercício do direito fundamental de constituir família previsto no artigo 36.º, n.º 1, da Constitui- ção». Com efeito, os referidos Autores afirmam: «O direito a constituir família implica não apenas o direito de estabelecer vida em comum e o direito ao casa- mento, mas também um direito a ter filhos […]; direito que embora não seja essencial ao conceito de família e nem sequer o pressuponha, lhe vai naturalmente associado (cfr. a epígrafe deste preceito). Isso compreende […] a liberdade de procriação […]
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