TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
103 acórdão n.º 225/18 característica tem de ser relevada na análise da admissibilidade constitucional da figura. De resto, foi também essa a conclusão do CNECV na apreciação que fez em 2012 de tal aspeto no seu domínio específico de atua- ção [cfr. o Parecer n.º 63/CNECV/2012, ponto 2, alínea a) , p. 9, que refere, como decisivo para a aceitação da gestação de substituição apesar de todos os riscos e incertezas, «a exigência da sua natureza absolutamente gratuita»]. Pelo exposto, o argumento invocado quanto à exploração económica da gestante não procede em face do modelo português de gestação de substituição. 25. Em segundo lugar, há que analisar o argumento da instrumentalização da gestante de substituição, segundo o qual esta é reduzida à condição de um simples meio – uma incubadora, isto é, um objeto ao dispor dos interesses reprodutivos de terceiro –, aparecendo a sua dignidade «capturada pela liberdade»; o que conduziria a uma nova e grave forma de discriminação da mesma face ao homem, por poder ser tratada como objeto, e, consequentemente, a uma posição de clara inferioridade face a este [cfr. Paulo Otero, “A dimensão ética da maternidade de substituição” in Direito e Política , n.º 1, Outubro-Dezembro, 2012, pp. 82 e seguintes, pp. 85-86; no mesmo sentido, vide João Loureiro, “Outro útero é possível: civilização (da técnica), corpo e procriação – Tópicos de um roteiro em torno da maternidade de substituição” in AAVV (Coord.), Direito Penal: Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais – Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pp. 1387 e seguintes, p. 1413: «a gestante é degradada ao papel de incu- badora, numa clara instrumentalização»]. O mesmo argumento surge ampliado e reforçado na perspetiva de Estrela Chaby: «a gestação de subs- tituição afronta a dignidade da gestante, porque implica não apenas a instrumentalização de uma parte do corpo da mulher, mas sim a utilização de todo o seu corpo, durante a plenitude do tempo que dura a gesta- ção. Uma vez que o corpo não é separável da pessoa nem a gravidez corresponde a uma “condição médica”, mas sim a um estado durante o qual a mulher mantém e utiliza a sua liberdade de viver, à gestação de subs- tituição é inerente a utilização de outra pessoa em todas as dimensões da vida. Por isso mesmo, no contrato de gestação são usualmente especificados uma série de deveres e obrigações que esta terá de cumprir» (cfr. a Autora cit., “Direito de constituir família, filiação e adopção…” cit. , pp. 353-355). Nas palavras de Sylviane Agacinsky, seguida de perto neste particular por aquela Autora, «a mera utilização do ventre [em benefício de terceiro], mesmo que pudesse não ser mercantilizada, é contrária à dignidade, porque faz da própria exis- tência de um ser humano um meio ao serviço de outrem» (Autora, cit., Corps en Miettes, Flammarion, Paris, 2013, p. 93). Nesse sentido, a gestação de substituição implica um direito à utilização do outro contrário à dignidade da pessoa humana. Estas posições, todavia, deixam na sombra o papel ativo da gestante, ignorando as suas motivações, e sobrevalorizam os condicionamentos à sua vida decorrentes de uma gravidez. 26. No que se refere a este segundo aspeto, não pode negar-se que a gravidez, enquanto processo bio- lógico, psicológico e potencialmente afetivo, é um estado da mulher no seu todo que, inclusivamente, se projeta na sua interação com aqueles que lhe são mais próximos e, bem assim, com a sociedade em geral. Por isso mesmo, valorizando tal estado, ao mesmo tempo que reconhece a maior vulnerabilidade que lhe está associada, a Constituição prevê um estatuto de especial proteção para as mulheres durante a gravidez (artigo 68.º, n.º 3). Mas a vida da mulher grávida não tem de se esgotar na gravidez: para além dos cuidados impostos por tal estado, a mulher conserva a sua liberdade de autodeterminação, podendo continuar a “viver a sua vida”, tal como o fazia antes de estar grávida. Se é verdade que «a mulher grávida toma diariamente incontáveis decisões das quais não se desliga do seu estado, mas que são decisões da sua vida, tendo em consi- deração que está grávida» (assim, vide Estrela Chaby, ob. cit. pp. 354-355), não é menos verdade que o rumo da sua vida não tem de mudar só porque engravidou: mesmo estando grávida, pode continuar a trabalhar, a cuidar da sua família ou a desenvolver as atividades de lazer ou de formação, como vinha fazendo até então.
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