TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018

102 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL um desejo de ter filhos dos beneficiários, «praticamente desaparecendo enquanto sujeito de direitos»: a «mãe gestante converte-se numa incubadora ao serviço dos beneficiários» num «processo de coisificação» incompa- tível com a sua dignidade. Apesar de reconhecerem que, no quadro excecional em que a lei admite a gestação de substituição, a gestante também satisfaz «um louvável espírito altruísta e de solidariedade», desvalorizam tal circunstância por a realidade ser, na grande maioria das vezes, outra, a que corresponde a expressão de sentido pejorativo “barrigas de aluguer”. Em suma, de acordo com tal perspetiva, a violação da dignidade da pessoa humana é uma consequência necessária da gestação de substituição, porquanto esta coenvolve uma inaceitável exploração reprodutiva e a utilização do corpo da mulher. 24. Em primeiro lugar, importa não desconsiderar a natureza gratuita dos contratos de gestação de subs- tituição. Tal como na LPMA, só esses são permitidos na Grécia e no Reino Unido. E, em muitos outros paí- ses o esforço de limitar o mercado internacional de gestação de substituição passa pela proibição de contratos onerosos. Além disso, a gratuitidade é mais uma garantia de que a atuação da gestante é verdadeiramente livre e, como tal, uma expressão da sua autonomia. Não menos importante e significativo, é o diferente sentido e alcance que a gestação de substituição gratuita assume para a gestante, em especial num quadro legal como o português, em que tal método de pro- criação só é admissível a titulo subsidiário («nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem»). Com efeito, a sua intervenção no projeto parental dos beneficiários é co-constitutiva, já que o mesmo não pode assentar exclusivamente no desejo de ter filhos destes últimos. É igualmente essencial a solidariedade ativa da gestante, traduzida na vontade de que aqueles concretos beneficiários sejam os pais da criança que ela venha a dar à luz. Para haver gestação de substituição de acordo com as disposições da LPMA, os benefi- ciários têm de querer ser pais e a gestante tem de querer que os beneficiários sejam pais. E, por isso mesmo, ao aceitar colaborar ativamente com os beneficiários, a gestante, apesar de se submeter a técnicas de PMA, não assume um projeto parental próprio – ser mãe da criança que vier a dar à luz –, visando antes possibilitar a concretização do projeto parental daqueles (cfr. supra o n.º 8). Nessa exata medida, este projeto parental, sem deixar de ser próprio dos beneficiários, é também partilhado pela gestante: os beneficiários e a gestante querem todos que os primeiros tenham uma criança que seja sua filha, não obstante ter sido dada à luz pela segunda (cfr. o artigo 8.º, n. os 1 e 7, da LPMA). E é com base nesta convergência de vontades – rectius : é reconhecendo a sobredita convergência de vontades no pressuposto de a mesma ser válida e eficaz – que a lei prevê um regime especial de estabelecimento da filiação que afasta a regra geral do artigo 1796.º, n.º 1, do Código Civil. Por outro lado, além de não se poder analisar uma figura jurídica somente a partir das suas patologias – como se o seu funcionamento saudável não seja possível ou sequer imaginável ou deva ser considerado como totalmente irrealista –, a verdade é que o legislador se preocupou em estabelecer condições mínimas que assegurem o requisito positivo da gratuitidade da gestação de substituição: proíbe pagamentos e doações à gestante, excetuadas as compensações de despesas efetivamente incorridas (artigo 8.º, n.º 5, da LPMA) e exige que as partes do contrato de gestação de substituição não tenham entre si vínculos de subordinação económica (n.º 6 do mesmo preceito). Nada na lei impede que o clausulado contratual reforce estes aspetos, embora também não imponha qualquer tipo de cláusulas especificamente votadas a tal desiderato. Mas, em todo o caso, o legislador sanciona civil e penalmente a onerosidade daquele tipo de contratos ou o aproveita- mento económico dos mesmos por parte de terceiros (artigos 8.º, n.º 12, e 39.º, n. os 1, 2 e 6, da mesma Lei). Em especial, no respeitante à sanção criminal, deve salientar-se que a tentativa é punível e que, em qualquer caso, estão em causa crimes públicos. Isto significa que uma mera denúncia ou suspeita é suscetível de desen- cadear uma investigação criminal, mobilizando os meios públicos de controlo da legalidade mais eficazes. Em suma, a gratuitidade da gestação de substituição consagrada no ordenamento português é um dos seus traços essenciais e o legislador adotou medidas efetivas tendentes a garanti-la minimamente, pelo que tal

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=