TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 101.º volume \ 2018
100 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL uma sociedade livre, justa e solidária”. […] Neste sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana surge, não como um específico direito fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas subjetivas, mas antes como um princípio jurídico que poderá ser utilizado na concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados ou na revelação de direitos fundamentais não escritos» (Acórdão n.º 101/09). Como refere Maria Lúcia Amaral, «o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por ter um con- teúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos elementos da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas» (vide Autora cit., “O princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional” in Jurisprudência Consti- tucional , n.º 13, 2007, pp. 4 e seguintes, pp. 4-5; vide também Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, vol. I, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 78 e seguintes). Mas, como sublinhado no Acórdão n.º 101/09 no último trecho citado, tal não impede que o mesmo princípio tenha um valor próprio e que desempenhe diversas funções relevantes em matéria de direitos fundamentais – desde logo, no que se refere ao princípio da igualdade (cfr. o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição) e, bem assim, por exemplo, no tocante à identifica- ção de direitos não escritos ou como critério de interpretação e de ponderação nos conflitos entre direitos (vide, por último, as referências em Benedita Mac Crorie, “O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa” in Afonso Vaz, Catarina Santos Botelho, Luís Heleno Terrinha e Pedro Coutinho (Coord.), Jornada nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução, Universidade Católica Editora – Porto, 2017, pp. 104 e seguintes, p. 108) – em consonância, de resto, com a necessária articulação das suas múltiplas dimensões («a dignidade como dimensão intrínseca do ser humano, a dignidade como dimensão aberta e carecedora de prestações [e] a dignidade como expressão do reconhecimento recíproco» – vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição… , cit., anot. VIII ao artigo 1.º, p. 199). Estes últimos Autores salientam que o valor próprio e a dimensão normativa específica da dignidade humana – a dimensão intrínseca e autónoma de cada ser humano –, constituindo embora um “dado prévio”, não é «um dado fixista, invariável e abstrato[, uma vez que se articula] com a liberdade de conformação e de orientação da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoa, o que aponta para a necessidade de, não obstante a existência de uma constante antropológica, haver uma abertura às novas exigências da própria pessoa humana» (vide idem , ibidem ). Esta dialética entre o intrínseco-permanente que constitui um prius e a abertura inerente à natureza histórico-cultural da pessoa não é fácil de concretizar positivamente, para mais no quadro de uma sociedade democrática e plural. E oTribunal Constitucional tem reconhecido isso mesmo, seja recusando identificar a dignidade humana a partir de um dado sistema de valores, éticos, morais ou religiosos, ou uma certa tradição filosófico-cultural, perspetivando-a como um conceito axiologicamente fixo ou “fechado”; seja recusando considerar tratar-se apenas de uma “norma de receção” de conceções filosóficas predominantes na sociedade (e, nessa medida, de um conceito totalmente aberto e sem um conteúdo próprio). Ao mesmo tempo, e com todas as cautelas, o Tribunal não afasta a possibilidade de tal princípio operar como parâmetro de apreciação da inconstitu- cionalidade, reconhecendo um primado de concretização ao legislador democrático (vide, por exemplo, os Acórdãos n. os 105/90 e 359/09). E, perante soluções legais concretas, o Tribunal reconhece relevo particular à «convergência de soluções legislativas em ordenamentos que, com o português, sem dúvida se integram na mesma básica “civilização jurídica” – e civilização a que justamente é comum a mesma ideia e pressuposto fundamental da “dignidade da pessoa humana”» como «mais um índice ou fator (e particularmente significa- tivo)» de que uma dada solução legal «não implica violação daquele princípio ou pressuposto jurídico essen- cial, tal como deve ser entendido no quadro constitucional português» (assim, vide o Acórdão n.º 105/90). É neste quadro problemático que o Tribunal Constitucional tem vindo a concretizar a referida dimensão intrínseca da dignidade humana a partir da sua violação, reconhecendo um importante valor heurístico à
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=