TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
90 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de vida, a saúde pública e a proteção ambiental, envolve a intervenção das autarquias locais, mais próximas das populações, bem como do Estado, que tem maior capacidade de intervenção e uma visão supralocal dos problemas. Neste âmbito, a presente questão não trata apenas de um problema de organização do Estado, mas também da sua interação com as autarquias – matéria em que é essencial que este respeite plenamente as suas garantias constitucionais de autonomia. O problema central, neste contexto, das questões trazidas ao Tribunal Constitucional está relacionado com o direito à propriedade dos municípios, protegida ao nível da autonomia patrimonial das autarquias locais, que é uma das dimensões da autonomia expressamente consagrada na Constituição (artigo 238.º, n.º 1). O património das autarquias, porque afeto à prossecução dos interesses locais, nos termos da Consti- tuição, não pode ser objeto de disposição livre pelo Estado. Ora, trata-se precisamente do que aqui ocorreu. A violação da autonomia patrimonial das autarquias ocorre em dois momentos: quanto às suas partici- pações sociais nas empresas gestoras dos sistemas multimunicipais, que foram extintas (ou “reafectadas”), e quanto à afetação do seu património a estas entidades. 3. O Estado, através da aprovação dos referidos Decretos-Leis, extinguiu empresas públicas (socie- dades comerciais com a forma de sociedade anónima), onde o capital social não era exclusivamente seu, mas também das autarquias locais. Nesse contexto, os direitos sobre as participações sociais dos municípios encontram-se cobertos pela garantia constitucional da propriedade autárquica. Nesse sentido, quando as empresas públicas existentes são extintas e criadas novas, existe uma dupla intromissão na autonomia patrimonial das autarquias: i) por um lado, extinguem-se as participações sociais numa sociedade anónima; ii) por outro lado, são atribuídas participações às autarquias, na nova empresa. Ambas as operações incidem diretamente sobre o património municipal e ocorrem independentemente da vontade dos proprietários das participações sociais e sem garantia de compensação justa pela extinção de património. Trata-se do Estado a dispor sobre o património das autarquias como se fosse o seu – sem obter o consentimento das autarquias para dispor sobre o seu património e sem ressarcimento devido, através de uma justa indemnização – o que é precisamente o que a Constituição pretende evitar. 4. Existe também a questão da tutela patrimonial de outros bens autárquicos que são afetados às novas empresas gestoras de sistemas multimunicipais. Por um lado, o regime prevê a afetação forçada das infraestruturas, bens e direitos dos municípios que, não estando já afetos aos sistemas agregados, se revelem necessários ou úteis ao bom funcionamento do sis- tema, passando a integrá-lo, mediante contrapartida. No entanto, após determinar essa integração, o regime não determina qual o procedimento para a sua realização, nem habilita a celebração de um contrato neste âmbito específico. A norma, assim, contém a mera disposição sobre o património das autarquias, indepen- dentemente da sua vontade, pelo que terá de ser considerada inconstitucional por violação da autonomia patrimonial local. Por outro lado, prevê-se a transmissão forçada das infraestruturas, bens e direitos munici- pais que estavam afetos aos antigos sistemas e dos respetivos contratos, de novo, independentemente da von- tade das autarquias. Trata-se de uma intromissão na autonomia contratual e patrimonial das autarquias pois o Estado opera uma alteração unilateral aos contratos existentes, relativos ao património autárquico, quanto à substituição de um dos contraentes e à extensão da sua duração (sem prazo máximo), independentemente da vontade das autarquias, o que é inconstitucional. 5. Não se nega que o Estado pode criar novos sistemas multimunicipais, ouvidas as autarquias, através da extinção, por fusão, de sistemas existentes. Isso pode implicar a criação de novas entidades gestoras dos sistemas. No entanto, sendo as atuais entidades gestoras detidas conjuntamente pelo Estado e pelas autar- quias, num contexto de cooperação na prossecução dos interesses públicos, estas não podem ser simples- mente extintas e reordenadas como se de meros serviços públicos estaduais se tratassem. Nada neste processo implica a necessidade de afetação do património das autarquias independentemente da sua vontade e de justa
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