TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

656 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL controvertidos e valorar o respetivo resultado, em ordem à fixação do quadro factual relevante para a decisão do incidente. Serve isto para dizer que a circunstância de nos encontrarmos perante a faculdade de livre apreciação de um específico meio probatório – a prova pericial – não introduz qualquer elemento com efetivo valor diferencial. Tal como sucederia se em causa estivesse qualquer outro meio de prova – como a prova teste- munhal –, do que se trata é de saber se o princípio da reserva de juiz veda ao legislador a possibilidade de atribuir a determinado oficial público – o notário – competência para o coexercício da função materialmente jurisdicional que precede a definição da posição jurídica de cada um dos contitulares de determinado acervo patrimonial, conjugal ou hereditário, nos casos em que, ocorrendo uma divergência entre os interessados quanto ao valor a atribuir a certos dos bens a partilhar, a respetiva superação reclame o recurso a meios de prova e sua consequente valoração, tendo em vista a dilucidação dos factos controvertidos e, por essa via, a definição do quadro factual  relevante para a dirimição do incidente. No segmento em que reflete a atribuição ao notário da faculdade de apreciar livremente a prova pericial sempre que tiver havido lugar à realização de mais do que uma perícia com o mesmo objeto, a norma cuja aplicação foi em concreto recusada será, por isso, constitucionalmente legítima se e na exata medida em que o for a atribuição àquele decisor não jurisdicional da competência para instruir probatoriamente o litígio relativo à fixação do valor dos bens a partilhar suscitado no âmbito do processo de inventário e, com base na apreciação da prova a cuja produção tiver tido lugar, fixar autonomamente a matéria de facto pressuposta pela decisão a proferir no âmbito de tal incidente. É essa a questão a que, tendo em conta o regime estabelecido na Lei n.º 23/2013, se procurará responder em seguida. 19. Conforme notado já, o processo de inventário destina-se a descrever, avaliar e partilhar os bens que integram um determinado acervo patrimonial comum, pondo termo à comunhão conjugal ou hereditária. No seu âmbito, dirimem-se, por acordo das partes ou mediante pronunciamento do órgão decisor, conflitos de interesses respeitantes a direitos patrimoniais disponíveis, que admitem por isso formas de auto-composi- ção, o que constitui um indicador seguro de que nos encontramos fora do âmbito do chamado «núcleo duro da função jurisdicional» (assim é designado por J. C. Vieira de Andrade, in A reserva do… , cit., p. 224), isto é, daquele em que, por força da Constituição, ao juiz haverá de pertencer tanto a primeira como a última palavra quanto à conformação da posição jurídica dos particulares. Sendo os direitos exercidos através do processo de inventário disponíveis por natureza – trata-se de direitos alienáveis ou por qualquer forma transmissíveis pelo respetivo titular –, encontramo-nos, ao invés, no domínio da reserva relativa da  jursidictio,  ou seja, daquele em que, ocorrendo razões de interesse público constitucionalmente relevantes, o legislador ordinário se encontra constitucionalmente autorizado a atribuir a um órgão não jurisdicional competência para, através da definição do direito aplicável aos factos previa- mente estabelecidos, intervir na resolução dos diferendos que possam suscitar-se entre os interessados, reser- vando aos tribunais a faculdade de, por via do reexame judicial do pleito, fixar, em definitivo, o sentido da composição do litígio.  Sendo esta a posição de que deverá aqui partir-se, haverá que averiguar, num primeiro momento, se as razões subjacentes à parcial desjudicialização do processo de inventário dispõem de relevância suficiente para legitimar tal opção em face do princípio da reserva de jurisdição, consagrado no n.º 1 do artigo 202.º da Constituição. Confirmando-se tal hipótese, importará verificar em seguida se o regime aprovado pela Lei n.º 23/2013, tal como o interpretou o tribunal recorrido, assegura – e por isso respeita – a garantia do acesso à j urisdictio  consagrada no referido preceito constitucional, nos termos em que essa garantia se impõe no âmbito da reserva relativa de jurisdição – aquele em que, conforme se viu já, se inscreve o tipo de processo aqui em causa.

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