TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

653 acórdão n.º 843/17 tribunais, parece claro que os notários assumem, a este nível de intervenção, um papel substitutivo central que não é comparável com aqueles que os advogados ou solicitadores assumem no âmbito do sistema de justiça, represen- tando ou patrocinando as partes. Assim sendo, justifica-se que, em relação a estes profissionais forenses, a participa- ção no sistema de acesso ao direito seja voluntária (artigo 10.º, n.º 1, da Portaria n.º 10/2008, de 3 de janeiro, que regulamenta o regime de acesso aos tribunais), contrariamente ao que sucede com os notários, em relação aos quais o exercício de um direito correspondente ou equivalente, neste âmbito, não deixaria de representar materialmente denegação de justiça por falta de recursos económicos, que é solução que, a reconhecer-se, atingiria o âmago do direito de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. O notário, sendo atualmente um profissional liberal, é simultaneamente um oficial público, independente e imparcial (artigo 1.º do Estatuto da Ordem dos Notários), o que decorre do conteúdo material das funções que lhe são cometidas, quer enquanto entidade a quem compete conferir autenticidade aos documentos e proceder ao seu arquivamento, quer enquanto entidade a quem também cabe a direção dos processos de inventário e, em regra, a decisão dos incidentes interlocutórios que nele se suscitem, sem prejuízo da garantia do recurso aos tribunais estaduais. Ora, a «incindível natureza pública e privada» da função notarial (artigo 1.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Notários), nos vários domínios em que se exerce, constitui traço distintivo que constitucionalmente legitima as diferenças de regime que possa haver na forma como o legislador especificamente posiciona o notário, em con- fronto com os restantes profissionais forenses, no sistema global de acesso ao direito e aos tribunais. Nesta perspetiva, a exigência do prosseguimento dos autos de inventário, na hipótese normativa questionada, não só não se mostra «em contradição intrínseca com a conceção global do sistema de acesso ao direito e de apoio judiciário», como constitui condição da sua plena efetivação nos casos, como o presente, em que a tutela jurisdicio- nal é efetivada, em primeira linha, por recurso a outras entidades que não os tribunais estaduais.» Tal como definido na Lei n.º 23/2013, o regime do processo de inventário releva, assim, da opção de transferir para um oficial público – o notário –, que exerce uma função de natureza simultaneamente pública e privada, no respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e da livre escolha (cfr. artigos 1.º, n. os 1 e 3, e 10.º do Estatuto do Notário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro), uma parcela da competência para a tramitação do processo por meio do qual se efetiva a tutela jurisdicional do direito que a cada um dos contitulares de um património indiviso assiste, sempre que requerida por um deles a partilha dos bens que integram o acervo comum, conjugal ou hereditário. Ora, é justamente na delimitação dessa parcela de competência, relativamente àquela que permanece na titularidade dos órgãos jurisdicionais, que radica o problema de constitucionalidade suscitado nos presentes autos. 17. Depois de definir os tribunais como os «órgãos de soberania com competência para administrar a justiça» (n.º 1), o artigo 202.º da Constituição descreve, no seu n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional, reconduzindo-o à garantia de três dimensões essenciais:  (i)  defesa dos direitos e interesses legalmente pro- tegidos dos cidadãos;  (ii) repressão da violação da legalidade democrática; e  (iii)  resolução dos conflitos de interesses públicos e privados. Diferentemente do que sucede em outros ordenamentos constitucionais, a função de dizer o direito em nome do povo é atribuída pela Constituição, aos tribunais e não aos juízes. Porém, conforme notado ainda por Gomes Canotilho e Vital Moreira, a «função jurisdicional pertence (…) aos juízes, sendo os tribunais (…) esquemas indispensáveis ao exercício da  jurisdictio pelo juiz». O artigo 202.º da Constituição estabelece, assim, uma reserva de jurisdição, enquanto reserva de com- petência judicial, no sentido em que, dentro dos tribunais, «só os juízes poderão ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais» (cfr. J. J. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portu- guesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 508-509).

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