TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

652 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL No mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão n.º 235/98: «A separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo de interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, a Administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público. Na primeira hipótese, a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em conflito; na segunda hipótese, verifica-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse público. (…) No quadro desta caracterização conceitual atingiu-se uma definição teleológica da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos órgãos do poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional e não já na função administrativa, estritamente jurídico, visando a realização do direito objetivo pela composição de interesses conflituantes e não o da sua aplicação ou concretização em função de outros interesses públicos, ainda que para o efeito usando como meio a dirimição de conflitos ou litígios jurídicos». Ora, tendo presente o regime aplicável ao processo de inventário e a caracterização das funções juris- dicional e administrativa resultante dos citados arestos, sem dificuldade se percebe que, na modelação do mecanismo que faculta aos sujeitos jurídicos a possibilidade de pôr termo a uma comunhão patrimonial, conjugal ou hereditária, o legislador de 2013 optou por delegar numa entidade não jurisdicional – o notário – o exercício de poderes públicos, traduzidos na prática de uma sequência de atos, umas vezes administrati- vos, outras vezes jurisdicionais, que culmina na definição autoritária de interesses privados. 16. Em si mesma, a possibilidade de exercício por órgãos não jurisdicionais de uma atividade material- mente recondutível à função jurisdicional nada tem de excecional ou insólito, em particular em ordenamen- tos jurídicos como o português. Pense-se, desde logo, na aplicação de coimas no âmbito de procedimentos contraordenacionais, cuja promoção compete a entidades não jurisdicionais. Trata-se de um domínio em que confluem administra- ção e jurisdição, no qual se inscreve a aplicação de «sanções cominadas no âmbito das atividades privadas sujeitas a regulação pública, em que as autoridades reguladoras dirimem litígios entre particulares» (cfr. José Carlos Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 30).  Justamente a propósito da concessão de poderes sancionatórios a autoridades independentes, é comum notar-se que «a prática do exercício da função judicial por órgãos não judiciais», com preterição da competência judiciária, constitui uma tendência «relativamente consolidada entre nós», que tem vindo a impor-se de forma «paulatinamente acentuada» (cfr. Paula Costa e Silva, “As autoridades independentes. Alguns aspetos da regulação económica numa perspetiva jurídica”, in Revista O Direito , Ano 138.º. III, 2006, pp. 558-559). Não é muito diferente o que se verifica suceder com a atribuição aos notários da competência para a promover a generalidade dos termos do processo de inventário. Ainda que a propósito da solução constante do artigo 26.º, n.º 2, da Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto – que regulamenta o processamento dos atos e os termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março –, este Tribunal teve já oportunidade de caracterizar a natureza da função desempenhada pelo notário no âmbito do processo de inventário, que situou num domínio de «inegável interesse público», no qual «nem o Estado atua (…) enquanto sujeito de direito privado, nem o notário, que é chamado a exercer funções públicas de natureza judicial, é um mero sujeito privado estranho às responsabilidades públicas que lhe são inerentes». No desenvolvimento de tal ideia, escreveu-se no Acórdão n.º 28/16 o seguinte: «(…) decorrendo a atribuição de competências aos notários, para a tramitação do processo de inventário, de uma opção vinculativa do legislador de transferir para o setor privado competências públicas antes exercidas pelos

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