TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
549 acórdão n.º 819/17 a priori , as condições dessa prevalência. Daí que não deixe de ser significativa a circunstância da remição ter sido concebida como direito irrenunciável (artigo 1511.º, n.º 2, do Código Civil). A caracterização da remição recorrendo à ideia de “expropriação” descreve fundamentalmente um efeito decorrente do exercício daquela faculdade que apresenta um sugestivo paralelismo com o efeito desenca- deado por uma expropriação: a desapropriação forçada (desencadeada por vontade alheia), do senhorio, do direito correspondente ao domínio direto. Descreve, ainda, um outro elemento central do conceito de expropriação: a consideração indemnizatória da posição liquidada pelo ato expropriativo, sendo certo que a remição coativa, no seio da enfiteuse, sempre envolveu uma contrapartida devida ao senhorio (o preço da remição). E descreve, enfim, essa caracterização por referência à expropriação, a presença de uma regra de atuação num quadro de contraposição de interesses, no sentido em que um destes é associado a uma “utilidade” que se entende dever prevalecer (no sentido em que pode ser desencadeada por ato unilateral do portador de um dos interesses). Note-se que este privilegiamento da posição do enfiteuta face ao senhorio – e trata-se aqui de ancorar esta opção no plano dos valores – apresenta-se intimamente conexionado com a ideia de funcionalidade do direito de propriedade da terra. Com efeito, Maria José Nogueira Pinto, num texto, publicado em 1983 ( O Direito da Terra , 3.º vol. de “A Reforma Agrária”, série dirigida por António Barreto, Mem Martins), de enquadramento jurídico da “Reforma Agrária”, reportava esta ideia – qualificando-a mesmo como “princí- pio da funcionalidade do direito de propriedade da terra” – a um conjunto de instrumentos de alteração da estrutura fundiária, através de diversas limitações aptas a atuar sobre as formas de dominialidade da terra. Especificamente quanto às situações do tipo da aqui em causa, referia a mesma Autora “[a] obrigação de explorar a terra direta e pessoalmente, a fim de individualizar a posse do solo, criar e reforçar os vínculos físicos entre o homem e a terra. A abolição das formas de posse da terra que se revelem antissociais (enfiteuse, latifúndio, etc.)” (p. 76). E – continuando a seguir a exposição desta Autora – um dos instrumentos de alteração da estrutura fundiária, em paralelo à expropriação e à nacionalização, corresponderia à “[…] trans- ferência da propriedade para outrem que não o Estado”, concretamente “[para quem] a cultivava e explorava a título privado […]”. Deste movimento constituía exemplo (no trecho temporal aí em causa) o Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de outubro, apreciado pelo Acórdão n.º 159/07 (cfr. item 2.3.1. supra ), e, precisamente, o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, com a abolição da enfiteuse ( ob. cit. , pp. 105/106). Diversos enquadramentos doutrinários são possíveis quanto à natureza do direito de remição na enfi- teuse; por exemplo, António Menezes Cordeiro ( Direitos Reais , cit., p. 720) caracteriza a remição, em tal quadro, como um direito real de aquisição (cfr. item 2.3.1., supra ). Em qualquer caso, o caráter fortemente sugestivo da referência à ideia de expropriação, descrevendo o sentido dinâmico da remição, parece-nos captar a essência da faculdade, irrenunciavelmente atribuída ao enfiteuta, de resgatar o foro, adquirindo potestativamente a propriedade do prédio. 2.5.3. Ora, referenciando-se ostensivamente a abolição da enfiteuse, operada pelo artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 195-A/76, ao desiderato constitucional de extinção do regime do aforamento (artigo 101.º, n.º 2, da versão originária do texto constitucional), entretanto atualizado para a proibição da sua reconstitui- ção (atual artigo 96.º, n.º 2, da Constituição), observamos existir credencial constitucional bastante para essa abolição – para a abolição em si mesma considerada (adiante ponderaremos a especificidade da consideração da constituição por usucapião) –, envolvendo essa credenciação a consequência estabelecida no segundo tre- cho do n.º 1 do mesmo artigo 1.º: implicar essa abolição a transferência do domínio direto para o enfiteuta e, consequentemente, a aquisição da propriedade sobre o prédio por este. Esta última asserção confirma que a transferência operou, verdadeiramente, como uma remição do foro desencadeada ope legis , isto no efeito pretendido, embora se tenha configurado, no concreto regime estabelecido, como uma remição sui generis, dada a preponderante exclusão do elemento “preço da remição” (artigo 1512.º do Código Civil), entendido este como uma forma particular de compensação forfaitaire do titular do domínio direto, em vista da priva- ção deste, rectius com um intuito que poderíamos descrever como portador de uma essência indemnizatória
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